A PROPÓSITO DO ABORTO
Há alguns anos, no Portugal democrático, saiu uma lei em que certos casos, especiais, de interrupção voluntária da gravidez, passaram a ser despenalizados.
Nomeadamente: quando está em risco a vida da mãe, quando houve estupro (abuso sexual da mulher) e quando há grande probabilidade (seguros motivos para prever) de vir a nascer uma criança deformada ou com graves deficiências físicas e/ou mentais. Mesmo assim, cabe à mãe decidir sem coacções, segundo a sua consciência e não tardiamente, ou seja, no início da gravidez, segundo prazos estabelecidos.
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Lei nº 6/84 de 11 de Maio:
Exclusão de ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez.
Artigo 140
Exclusão de ilicitude do aborto
1 - Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez;
d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.
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Esta lei suscitou acesa polémica a que não são alheias certas posições ético-religiosas. Refiro-me particularmente às normas radicais da Igreja Romana, na linha da sua intransigente rejeição do divórcio e do uso de contraceptivos, questões que foram, em tempos, motivo de controvérsia pública ressonante.
Com todo o respeito por quem tenha defendido ou defenda diferentes teses, julgamos dever dar o nosso contributo, tão convicto quão despretensioso, começando por afirmar que concordamos, no essencial, com a lei então promulgada. É uma lei de excepcionalidade e de liberdade de consciência materna.
Fomos criados por Deus com capacidade para fazer escolhas e para assumir a responsabilidade das mesmas. Isto é específico do ser humano. E, perante situações difíceis e alternativas embaraçosas, dilemas mesmo, há que decidir por um mal menor ou pelo bem possível. Decidir sobre deixar ou não que se desenvolva o feto dum futuro homem-monstro, de um ser deformado, talvez sem membros, ou com uma cabeça minúscula, atrofiada, ou uma “aberração” siamesa, por exemplo.
Os filhos devem ser o fruto duma união de amor. E quando, em vez disso, houve violação da mulher, pelo uso de força e brutalidade, altamente aversiva e traumatizante? É de preservar o fruto do assalto abusivo de um qualquer canalha?
Este indivíduo é punível, por lei, pelo acto praticado. Deverá a lei punir a mulher por se recusar a ter um filho que resulte de tal acto?
E quando a gravidez põe em risco a vida da mulher? É de sujeitá-la à morte? É de decidir pela morte de uma pessoa constituída como tal, em favor da sobrevivência dum feto que é um ser humano, sim, mas apenas em potencial ainda?
Para talvez nascer, ou talvez morrer com a própria mãe?
Escolher não é fácil.
Não é fácil, nem se resolve pelo recurso simplista à lei divina “não matarás”. Até porque essa lei geral não é tão linear, nem tão taxativa como possa parecer. Não saiu dela a própria pena de morte, a morte do assassino? Não é a lei do “olho por olho dente por dente”?
E não é verdade que o mesmo Deus que decretou essa lei, terá sido, segundo a Bíblia, quem orientou o seu povo ordenando que matasse semelhantes seus, nomeadamente em situações de crise como foi a matança dos idólatras do bezerro de ouro?
Lemos nas páginas do Antigo Testamento: "E disse-lhes: Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa, e passai e tornai pelo arraial, de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu próximo" (Êxodo 32,27).
E quanto ao pecado de Acan: "... então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram Acan, filho de Sera, e a prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus filhos, e a suas filhas, e a seus bois, e a seus jumentos e a suas ovelhas, e a sua tenda, e a tudo quanto tinha; e levaram-nos ao vale de Açor. E disse Josué: Porque nos turbaste? O Senhor te turbará a ti, este dia. E todo o Israel o apedrejou com pedras, e os queimaram a fogo, e os apedrejaram com pedras". (Josué 7,24-25).
E que dizer da guerras que Jeová terá liderado (segundo a Escritura), conduzindo Israel, nomeadamente na conquista de Canaã e na destruição dos seus habitantes?
Se penetrarmos no âmago do assunto, se procurarmos a interpretação profunda do mandamento referido, teremos de escutar Jesus, na magistral lição do monte: Mateus 5:21-22.
Aí, o Mestre explica a lei na sua verdadeira dimensão, a dimensão dos motivos, da intencionalidade. Transgredir a lei não se reduz ao acto consumado, mas também ao desejo. Transgredir é já acalentar no coração, mesmo que não haja concretização finalizada. E, neste plano, não há ninguém impune. Todos somos culpados de todos os dez mandamentos, inclusive o de matar.
Mata-se odiando, desejando a destruição de outrem; mata-se prejudicando o próximo por meio de agressão, de desgostos, de indiferença, de calúnia.
Há matar de uma só vez e há "ir matando".
Envenenar em pequenas doses, ao longo do tempo, provocando a morte, é também cometer homicídio.
Assim, quem pode apontar o dedo acusatório àquela mãe que, confrontada com um dilema grave e doloroso, decide não permitir que continue a gestação de um feto anormal ou aberrante?
Jesus condenou o fanatismo legalista dos fariseus que coavam mosquitos e engoliam camelos. (Mateus 23:24)
Os escribas e os fariseus faziam constante apelo à lei, à moralidade e aos bons costumes, tradicionais, numa perspectiva literalista, superficial, exibicionista e oportunista. (Mateus 5,20, Mateus 6,1-18, Mateus 15,1-20, Marcos 7,1-23)
O próprio Cristo foi apontado por eles, várias vezes, como transgressor da lei. Mas foi também contra os tais, contra esses religiosos “puritanos”, defensores da “justiça”, que o Mestre desferiu as mais veementes denúncias, as acusações mais causticantes. (Mateus 23)
É para Jesus que precisamos de voltar. Para a Sua palavra, Seu exemplo, Seus critérios. E se, como Ele disse, a síntese de toda a lei é o AMOR (Mateus 22,34-40), então é pelo amor que devemos pautar o nosso comportamento e as nossas atitudes, ainda que, aparentemente, em infracção da letra da Lei.
Mas, O espírito é que vivifica. (João 6,63)
E, como disse Paulo, em consonância com Jesus, "... a letra mata e o espírito vivifica". (II Coríntios 3,6)
Afinal, aqui também se aplica aquilo em que o Mestre tanto insistiu: "Misericórdia quero e não sacrifício..." (Mateus 9,13)
Aprendamos com Ele!
Leiria, Portugal