Por que ou para quê? Um ensaio sobre a Ética da Alteridade Pe. Airton Freire

Por que ou para quê?

(Um ensaio sobre a Ética da Alteridade)

Pe. Airton Freire

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Embora as situações sejam diferentes, há algo que nas pessoas vem a se repetir. É comum ouvir alguém, de freqüente, dar-se às voltas com conteúdos que retornam. São coisas que, constantemente, insistem em vir, e, em razão delas, vê-se pensando-se se deve-se ir por aqui ou por ali.

Há coisas que chegam de repente, fazendo acreditar, a quem as sente ou pressente, que a elas é preciso prestar atenção urgentemente. São coisas que teimam em ir e vir e, mesmo com o passar dos anos, apesar das alegrias ou mesmo desenganos, insistem em emergir.

Que coisas são essas, com as quais, de vez em quando, eu me dou de cara? Coisas que, para mim, são tão caras, que surgem, novamente, sem que eu entenda a que vieram ou a que se devem? O que é isso que de vez em quando retorna? O que é isso que me cobra e que, mesmo quando não quero, faz-me ir por aqui ou por ali? Que coisa é essa que, por vezes, está em minha vontade e, outras vezes, causa-me contrariedade?

Que coisa é essa que, há anos a fio, eu procuro ou mesmo me procura? Que coisa é essa que eu seduzo ou que me seduz, que guarda semelhança tanto com a treva quanto com a luz? Que coisa é essa que retorna, como quem cobra, cuja presença eu não posso negar? Que coisa é essa que eu trago em mim, que me faz ser assim, que me faz ser senhor das situações ou me faz ser despossuído de mim? Que coisa é essa? De onde vem? Como surgiu? Por onde começou? Que pode me causar alegria dentro da dor ou que, a não tomar cuidado, pode me causar grande dissabor? Que coisa é essa que eu sinto em mim? Que coisa é essa que, junto de mim, está; com a qual eu tenho, constantemente, que lidar; cuja presença me evoca outras presenças, com as quais eu não estava nem preparado a conviver, a trabalhar? Que coisa é essa que está em mim ou perto de mim e, mesmo parecendo não estar, me controla? Que me diz para ficar ou me manda embora? Que coisa é essa que eu trago em mim? E em que pode isso me modificar? Em que isso pode se modificar? Em que, uma saída, para tais coisas, eu posso encontrar? E, a persistir da forma como estou, aonde isso vai me levar? E eu pergunto: terá que ser assim? Será bom para mim ou é ruim? Será que o ruim tem que ser fatal?

Que coisa eu sinto emergir, que, por vezes, faz-me sonhar e, outras vezes, sorrir até chorar e que me diz: por aí tu deves caminhar, por aí não podes ir.

Eu preciso estar atento para certos sinais, para não ser por eles surpreendido. Eu preciso não negar a evidência dos fatos, nem fazer do óbvio, desmentido. Eu preciso admitir para poder isso trabalhar, para poder com isso lidar, sem o que, como poderei sobre isso me pronunciar e uma solução para isso encontrar?

Em síntese, o que é isso que retorna? O que é isso que me cobra? Que me faz mudo ou loquaz? Que me deixa inquieto ou que me deixa em paz? O que é isso que eu trago em mim? De onde vem? Para onde vai? Quer me falar de quê? Possui qual para quê? O que é isso que eu preciso ver? O que é isso que, aqui, agora, eu não pude enxergar e, se enxerguei, quis negar; olhei, mas disse que não vi? O que é isso? Para que isso que está em mim?

Todavia, passando por mim e se direcionando a outros, há algo que se baliza por um sentindo que se manifesta numa ética. Esta será da Alteridade ou da Totalidade. Descontextualizado é que não sou. Ser etéreo, excludente da realidade, ninguém é e vive. Por isso, cabe, neste livro, acerca das relações intersubjetivas, em situações as mais diferenciadas, via tratar. Isso passa desde o que se sente, a como se dão as demandas; desde o que se vê, ao que se nega; desde ao que se controla, ao que se libera; desde o que se inclui, ao que se escamoteia. Assim, um sentido há de pervardir uma modalidade de ser e de viver, mormente as que se dão balizadas por uma ética que há de ser, dentre outras, a mais pertinente em respeito e riqueza da diferença, sem o (ab)uso de posições.

1

A forma como tu percebes a vida produz em ti uma tal disposição para querer continuar ou até para querer desistir, que não depende totalmente de ti o que certos elementos podem provocar, a partir da percepção que tu, em relação a eles, possas ter ou vires a neles te empenhar. A forma como tu percebes o mundo resultará num posicionamento diante dele, a partir de determinada maneira. Se tua percepção do mundo for positiva, também positivas serão as relações dadas e, mesmo que elas venham sob o crivo do que pode te decepcionar, uma lição igualmente positiva delas haverás de ter. Por isso, é necessário trabalhar, primeiramente, a tua disposição em relação aos próprios acontecimentos; é preciso que tu queiras, primeiramente, inteirar-te acerca das coisas que em ti precisam ou não se integrar. Se tu estiveres integrado, o mundo para ti se apresentará como inteiro, não dividido, não persecutório, alienado; se tu estiveres, em alguns pontos da tua vida interior, dissipado, largado, alquebrado, em descontinuidade, enfim, não integrado, o mundo se apresentará para ti hostilizante, e tu, nele, hostilizado, em igual descontinuidade. A depender de tua percepção, resultará a tua disposição em relação ao que tens diante de ti, ao teu derredor, ratificando ou retificando nós. Se alguma coisa em tua vida tiver sido marcante e, por isso, bloqueado em alguma área tenhas sido, naturalmente não positivas serão tuas disposições e reações em situações semelhantes. Toda vez que algum de seus elementos (con)figurantes for evocado, terás reiterada a oportunidade de superação ou reincidência nos mesmos pontos da não resolvida questão, a depender de tua disponibilidade face a cada novo dado. A continuar dessa forma, nada mais se teria senão repetir o que já tiver sido passado e que não deixa o novo acontecer. Há, pois, que se trabalhar tua disposição interior acerca de determinados acontecimentos, que resulta em uma forma própria de encarar a vida, como uma anterioridade da qual procede uma seqüência de atos a serem continuamente renovados.

Considerando que tudo se dá num estado inicial e permanente de inacabamento, em constante aprimoramento, há que tudo se burilar, malgrado seja boa a matéria-prima em sua raiz. Tu precisas aprender com os acontecimentos e fazer em ti mesmo renovados aprimoramentos. Só tens duas saídas: ficar a te lamentar e a procurar ouvidos que queiram te ouvir, lugar de quem procura quem seja capaz de se compadecer de si; ou fazer um enfrentamento, pela superação daquilo que para ti tiver sido marcante. Nessa superação, tu terás condições de trabalhar tanto o que concerne à estrutura ou à dinâmica de uma questão especificamente dada. Podes escolher entre ficar a um passado afixado, ou integrar a lição que ele te traz e continuar a fazer a caminhada, sabendo que o que surgir a partir dali, dependerá, em grande parte, de ti. A forma como tiveres de vivenciar cada nova questão está em ti. É teu fazer esta opção: ver o mundo dividido, e, então, em ti e a partir de ti, tudo estará partido; ou então tu te decides por integrar e, integrado, terás uma chance de melhorar a tua própria percepção e fazer o novo vir a se dar.

Está em ti a opção que vais tomar.

Seqüência 2

Há certas coisas às quais é preciso dar uma especial atenção, mormente aquelas que nos tomam de súbito e nos fazem, sem querer, ouvir barulhos nos porões. Algo demanda por uma resposta, uma decifragem, que nos toma de súbito e nos faz tanto soerguer quanto nos faz prostrar; algo que nos faz entender o que, até então, não pudemos perceber, que nos embota os sentidos e nos lança numa luta a não saber até onde se pode ir e o que se pode fazer.

Há certas coisas que retornam, em determinadas ocasiões, como temas do esquecido e voltam cobrando uma resposta, tratando o que, para mim, eu não desejaria que fosse novamente aludido. O que fazer? Eu tenho que perceber que há certas coisas em ti que ainda não foram resolvidas. Tudo aquilo que for objeto de um escamoteamento, recalque, isolamento, num desejo abrupto de isolar, de esquecimento, voltará cobrando juros, trocos, correções, nesse, naquele ou em qualquer súbito momento. É preciso tomar um posicionamento e resolver isso acerca do que ainda está dentro. Acerca disso convém que se tome posicionamento, e urge que seja objeto de prioridade definitivamente.

Toda vida nossa, neste tempo que estamos vivendo, é uma oportunidade que o Pai, em sua bondade, dá-nos, para que se possa, no amor, ir crescendo, amadurecendo. É verdade que, ao longo de uma caminhada, percalços existem, pontos, elementos a serem transportados; outros a serem superados existem também. É preciso não se deter, demasiadamente, em determinado momento, para não se perder a graça e a beleza do encanto e da novidade que haverá em posteriores momentos. Todavia, não se podem queimar etapas. É preciso saber o quê, como e quando convém. Nada demasiadamente; nem além, nem aquém. É preciso ter a palavra certa, a palavra medida certa no momento de agir, para que os fins dantes almejados não sejam alijados. No bem, há que se persistir, para não se arrefecer e querer desistir. Contudo, não se pode forçar e pedir de quem não possa dar. Não se pode cobrar de quem não possa pagar. Não se pode exigir de quem nem saiba para onde ir.

É preciso considerar pessoas, situações, momentos, avaliar razões do coração e da mente, antes de qualquer posicionamento. Que não sejas tu instável nas decisões. Isso vindo a se dar, não poderão te olhar como referencial estável, confiável, para todo e qualquer momento. Se tu mudares como muda de posição o vento, não serás para ti, nem para os teus, apreciável em nenhum momento.

As oportunidades que estás tendo, nunca as terás de novo da forma como agora estão a acontecer. Momentos semelhantes, poderás viver, interiormente, mas nunca com as mesmas chances e nem com o encanto que há para ti neste exato momento. Se, para teu crescimento, tiveres que sofrer, o amor seja a quota, e o sofrimento, batente à porta, possa aí permanecer até quando preciso for, desde não aconteça inutilmente. Não foste criado para sofrer, mas, se um dia isso vier acontecer, que seja por tua fidelidade ao amor, expressão que há de ser do amor, em sua forma efetiva de ser.

Seqüência 3

Nas relações entre pessoas, localizam-se as maiores dificuldades de superação, mas todas elas têm início, logo cedo, no recôndito mais escondido de cada ser humano, a saber, no seu coração. Se teu coração, a certos conteúdos, não estiver afeiçoado, e, acerca de outros, não tiver superado, conflituosas, pois, serão sempre as tuas relações com o que mais próximo de ti estiver. Por isso, é custoso para ti, por vezes, imaginar que algo que poderia ter sido diferente e que, para além do que quiseste ou imaginaste, veio a se dar, mesmo que, por vezes, pegues-te dizendo assim: “Se dependesse de mim, seria diferente do que tem sido”.

Para não acontecer que venhas amanhecer sem ter ainda anoitecido, para que o desejo de superação não resulte em frustrações reiteradas por conteúdos novamente não superados, para que não te fixes no culto ao passado, negando-te olhar em foco para o que há em frente e ao teu lado, para que, em razão disso, não desistas do possível, malgrado o imprevisível, considera o exato momento que estás vivendo. Este tempo é entrecruzamento destes momentos: o que foi e o que está sendo; e de ambos depende o que está em vias de se dar. O espaço onde algo se passará, diferentemente, do que tem sido, ao menos em vista do possível, acontece, neste exato momento, a depender do posicionamento que, face aos apelos da própria vida, hás de tomar. Se tu apenas deixares que as coisas venham se desenrolar, o que significa deixar acontecer da forma como a outros, em suas circunstâncias ou interesses, bem aprouver, constituir-se-á numa matriz de insatisfações, ânsias, que bem algum a ti ou a outrem trará. Bem vale entender que, mais importante do que saber é ter as condições de evitar acontecer o que desestabiliza. Não vindo isso a acontecer, razões até poderás encontrar para culpabilizar a ti ou a outros por aparentes fracassos e novamente dizer “se dependesse de mim” ou até “eu não entendo porquê”. Afinal de contas, não se trata de entender, pois, em algum ponto, tu sabes de há muito como já deverias ter procedido ou como ainda tens de proceder. Todavia, insistes nos mesmos pontos e por quê tanto? Por que cultuar a dor ou cultuar o pranto? Se poderia ter sido diferente, então toma a decisão ao menos de considerar as reais possibilidades de tornar o possível em algo real a ser efetivado. A palavra é superação. Supera-te, primeiramente, administra-te conscientemente. Saberás, então, administrar e superar, nos limites de tua realidade, toda e qualquer situação que te vier pela frente.

Por que ou para quê?

Seqüência 4

Sob diversos ângulos, o mesmo fato pode se enxergar. Por exemplo, tu podes dizer que ninguém merece o teu esforço, que ninguém merece todo o tempo, por alguma razão, despendido, considerado por ti perdido. Ninguém merece anoitecer sem ter amanhecido, ninguém merece tudo o que tens vivido. Não vale a pena a pena já sofrida, não vale a pena o tempo gasto numa solução que, por injusta, pode ser definida e entendida. Não faz sentido viver, outra vez mais, o mesmo até então vivido, depois de tudo o que foi dito e feito, como se agora dissesse tanto faz. Ninguém merece, depois de tudo ter passado, acontecido, após ter sido largamente acreditado, perceber que, afinal, nada restou... Essa é uma forma de compreender o que, de ângulo oposto, do mesmo fato, poderia-se bem dizer: apesar de tudo o que aconteceu, valeu. Mesmo na dor, aprendi. Foi por erros e acertos, que aqui cheguei e, se perdas houve, em alguns pontos também venci. Mesmo onde perdi, houve aprendizado. Agora, eu conheço mais a mim e ao outro e, por isso, não me sinto mais isolado. Tenho razões para continuar porque, integrando o que vivi, eu posso precaver-me acerca dos erros que eu sei que cometi e sei que, no bem, eu posso ainda continuar a acreditar. Se alguma vez decepcionei e também fui decepcionado, já estou ou deixo em aberto vir a estar arrependido. Ninguém, que eu conheça, é infalível, mas, se eu amar a verdade e nela quiser caminhar, ela estará ao meu lado. Por isso, vale querer continuar, vale acreditar, pois, se não continuar, por não acreditar, já estarei derrotado muito antes da batalhar começar. Eu preciso me precaver, para não vir de novo a cometer erros já cometidos, pois, ao não discernir ou agir apenas de acordo com uma tendência, eu posso perceber agora quais as devidas ou indevidas conseqüências. Mas, de tudo o que aconteceu, eu posso dizer: valeu. Vivo e são estou aqui, malgrado as marcas do coração. Se perdas houve, foram, sobretudo, as perdas da ilusão. Estou fortalecido. A longa noite passou, o dia chegou. Estou amanhecido e decidido a querer continuar.

São duas formas diferentes de perceber e se posicionar diante de um mesmo fato.

Um concerne à lamuriação; o outro, à superação. Quanto a ti, hás que fazer o que se ordenará em função de um para quê.

Seqüência 5

Um dado de realidade a ser considerado acerca das relações interpessoais vem das conseqüências dos atos que se produzem aí. De que maneira? Não só para o imediato do instante em que se dão, mas, ainda, pelo que há de transbordar para muito mais além do que, inicialmente, se pôde imaginar. Devido ao fato de estarmos todos uns aos outros, por algum vínculo, ligados, nada se passa como um fato isolado.

A indiferença, em relação a um dado de realidade, implica na participação de duas partes em uma mesma situação da qual participa esse mesmo dado. Essa indiferença faz sofrer tanto a parte envolvida afetivamente quanto a parte que se nega a efetivar um traço do que poderia resultar numa via de comunicação. Esse traço, a compaixão, é capaz de realizar a solidariedade, que põe em unidade ambos os lados.

A compaixão é o avesso da indiferença. Não está acima do outro, de sorte que este se sinta como vivendo a partir do exercício da sua caridade. A compaixão significa o reconhecimento, na humildade, de que todos nós participamos da humana condição, com limites e potencialidades. Por isso, o gesto compassivo que podemos ao outro dirigir é o que vai na contramão da indiferença, que faz ilhar e não ver uma razão ética para agir, mesmo que a lei não possa prever ou não obrigue o que, no encontro, efetivamente possa se dar.

Eu me percebo interpelado pela própria situação do outro, em seu limite, decorrência natural de sua presença, tendo-o diante de mim, o que questiona minha centralidade. Eu me percebo tendo o meu próximo como companheiro de viagem, e essa comunicação torna possível quebrar a ilha, a barreira, o muro da separação que atos alheios a nossa vontade - e que neles já nascemos contextualizados - nos impedem de viver a alteridade em diferentes ocasiões.

Se o que entendemos por amar não se expressar na possibilidade de romper com a indiferença, essa ilha de negação da interdependência, pouco adianta o que se venha a descrever do que os atos humanizantes poderiam ser. Vale o que o amor efetivo, mais que afetivo, possa fazer aqui acontecer. A indiferença vai na contramão do amor solidário; é o diametralmente oposto à compaixão expressa em solidariedade.

Pensa sobre esses elementos, medita sobre algum acontecimento em que tu te percebas no teu limite ou numa ação tua acerca do que tem sido, recentemente, a tua expressão de amor conseqüente em determinada situação. Pensando nisso, estarás tratando da vertente da indiferença ou do amor exigente e conseqüente que precisa ser isso, na ética da alteridade, como o nó da questão.

Por que ou para quê?

(Seqüência 6

Quando a vida de alguém transcorre ausente de serviço, perde o seu sentido. Quando a vida de alguém consiste em apenas aproveitar aquilo que a natureza tiver lhe proposto, aquilo que ao seu alcance estiver, a vida começa a se empobrecer e, a muito longe, dessa maneira, não se poderá chegar, malgrado tudo o que ao seu alcance por realizar se fizer. Uma vida destituída de sentido significa apenas vegetar. Presa ao supérfluo, circula seus dias em torno de trivialidades e de banalidades começará a se ocupar. À medida que, ao contrário, vive-se para o essencial, estar-se-á, na verdade, pondo-se em prática o discernimento entre aquilo que tão-só apraz e aquilo que revela, em atos, de que mais se é, potencialmente, capaz.

Tu precisas ter claro aonde queres ir, onde tu queres chegar, e nunca deves vir a te esqueceres de que todo o teu serviço há de ter lugar não apenas em viver da forma como te aprouver enquanto a morte tarda a chegar. Pois os que assim procedem se ferem e a outros vêm também a ferir. Os que assim agem, no final, desencorajam-se e perdem um referencial estável por onde, com segurança, queiram prosseguir. Vive, portanto, para um sentido, apesar da cota de dor que isso possa trazer consigo. Mas, se sofrer é parte inerente à condição humana, que vivas, pelo menos, com um sentido, aquilo de que tua alma, ao viver, inflama-se e, mesmo na dor, não reclama.

Na vida, é preciso viver para o que faz sentido; sentir o que faz querer. Em razão de um para quê, e não somente para se ter o que fazer, é que se vive o sentido de viver. Pois o sentido mais profundo de tua realidade passará ao largo de ti qualquer banalidade. Não adiantaria dizer o que faz sentido fazer. Nem sempre pelas mesmas coisas o teu coração continuará, ao longo dos anos, a arder. É preciso que o teu coração esteja de tal modo para um fim útil orientado, que o que se estabelecer como contrário passará de ti bem ao largo. Pois, não farás o certo pelo temor de seu contrário: antes, porque tua vontade a esse bem já estará alinhada. Quando a tua vontade ao bem estiver alinhada e do bem fizer seu aliado, tu poderás, então, dizer que tu serás, na terra, o sonho do teu Senhor, aqui realizado.

Quando tu orares, tu orarás ao teu Pai aquilo, tão-somente que com o seu desejo tem a ver e, dessa forma, tu poderás dizer: quando eu desejar, deseje eu o que tu desejas e quando eu quiser, queira eu o teu querer. Pois, se o teu desejo ao querer do Senhor vier se juntar, grandes coisas deste mundo, malgrado o limite de tua condição humana, por ti e por meio de ti haverá de se realizar. O Senhor é o primeiro Outro, na linha ontológica e teleológica, com o qual haverás de te realizar.

Tu precisas, pois, viver o sentido em que, plenamente, tu venhas te encontrar e, como por ti mesmo, não conseguirias, abre ao Senhor as condições de possibilidade para que, na tua súplica, por uma intensa vontade, Ele venha habitar em ti e, a partir de ti, a obra que Ele para ti desejou.

Seqüência

7

O que eu vejo do lado de cá eu vejo capturado pelo teu olhar, que me vê do lado de lá, de modo que as coisas que se passam aqui, ao olhar no espelho do teu olhar, eu as vejo repetidas aí. Assim, não somente o que eu vejo é o que está do lado de lá, mas eu vejo o que, do lado de cá, eu não enxergo, não ser a captura do teu olhar.

O teu olhar, ao me ver, capta de mim coisas que eu vejo quando eu olho para o teu olhar. Coisas que estão do lado de cá, eu passo a perceber quando olho para ti, querendo apenas te ver, que estás do lado de lá. Desse modo, o que vejo do lado de lá não é apenas o que de ti eu posso ou quero ver, mas vejo, também, capturado neste instante especular, o que do lado de cá eu não consigo ver.

Se eu tomar isso para considerar o olhar daquele que me ama, eu vejo um olhar que me vê e nada além do que o desejo reclama. É o olhar da completude, o olhar daquele que me quer ver e que, ao me olhar, deixa-me antever onde eu não posso me perceber ou aí não quero me ver, tampouco de mim saber.

Eu vou trazer a figura de alguém, agora, que muito pouco bem me quer. Exemplo agora posto, em vista do que se quer. O seu olhar olha para mim e no seu olhar eu vejo o que de mim ele não quer (não quer dizer, não quer saber, não quer ver...). É um olhar de negação, olhar de obturação, lugar que não deixa a imagem refletir. Por isso, não quer dizer, porque, se pudesse refletir no seu olhar o que em mim de bom pudesse haver, necessariamente, ao reportar-se ao conteúdo do seu olhar (que é o olhar do que em mim ele pode ver), ele haveria de dizer. Mas isso ele não quer fazer. Por isso, ele muda o foco do seu olhar em sua visão e, ao fazê-lo, o que ele não consegue enxergar é a sua negação.

Em algum ponto, contudo, focado eu estou, exatamente no ponto onde ele, olhando para mim, localiza a sua dor, e dessa dor ele consegue falar e consegue dizer o que há. Que dor? A de não ver, apesar de olhar.

A partir desse olhar, eu consigo ver o que, de outra forma, não teria eu a mediação para poder me ver. Então, deixo-me ver mesmo pelo olhar daquele que de mim nada quer ou nada pretende dizer; porque, o bem que em mim eventualmente exista (e, certamente, um bem em mim pode haver), o olhar daquele que não me quer certamente não quer dizer. O que fazer? Aproximemos mais o foco da questão, estabelecendo-o na relação Eu-Tu.

Tu falas daquilo que consegues ver, porque, falando do que consegues ver, ao falar de mim, estarás falando, também, de ti (pelo menos do lugar em que tu consegues e podes viver ou te permite ser!). Então, ao dizer de mim, tu dizes da posição, do espaço em que entre ti e mim pode se estabelecer. Razão para isso houve? Pode haver? Há de se ver, mesmo que enxergar não estejas querendo, tampouco disso mesmo saber.

Considera que tudo o que disseres do outro, mesmo que te pareça surpreendente, é o resultado do ângulo do teu olhar para a posição daquele que diante de ti está; pois o teu olhar pode capturar do outro coisas que, de outro ângulo, tu poderias, diferentemente, enxergar. Por isso, aquele que falar deve estar também preparado para escutar; e, se na fala houver um desejo de acertar, com certeza, a um porto seguro, ao invés de um ponto obscuro, haverá de chegar.

Nem tudo se passa do lado de lá, nem tudo se passa do lado de cá. A questão está em saber em que ponto dessas duas margens tu estás.

Ao invés do olhar que julga, após tudo querer saber, eu vou te dizer uma outra forma de proceder, utilidade maior que teus olhos poderão ter: eu vou trazer a tua figura para diante de mim, e sobre mim tu vais falar. Não há problema: fala como sou ruim, dize do que em mim outra coisa não consegues ver. Fala o quanto vontade tiveres, o quanto disposição para isso em ti existir. Afinal de contas, eu só te peço uma coisa: registra uma qualidade que não consegues negar em mim. Essa qualidade que não consegues negar em mim, eu vou escrever, o que já é uma inscrição, algo que não pode ser borrado. Escritura pode ser borrada; a inscrição não se borra - dela pode-se faz negação. Meu apelo é para que não venhas mentir. Que digas tão-somente, apesar dos erros que são tantos e que vês em mim, a qualidade, a única, ao menos, que consegues enxergar em mim.

Tu vais me dizer, eu vou registrar, e isso será a matéria sobre a qual vou me debruçar para a Deus agradecer. Essa qualidade que tu vês em mim, apesar da negação em que teimas permanecer e aí ficar, é a qualidade que eu não devo duvidar, porque, vindo de ti, não tenho eu como dizer que seja falseada, para agradar a mim.

A qualidade que tu vês em mim, apesar das outras que tão sobejamente conseguiste falar, é a qualidade que eu vou tomar para dizer: “Meu Deus, apesar de tudo ou mesmo contudo, essa qualidade viste em mim pelo olhar que não me quer”. Eu posso transformá-la em prece e dizer: “O Senhor ainda opera em mim”. E essa será a razão que eu terei para agradecer.

(In)conclusão

Em tua vida, tu poderás encontrar felicidade à medida que se estabelecer entre teus atos e pensamentos uma tal reciprocidade que nada de essencial fique de lado. A tua felicidade consistirá em te perceberes realizado acerca do que na tua vida faz sentido, daquilo que de essencial não deixaste de lado. Se alguém na vida já disse que felicidade se faz por momentos, eu te digo que felicidade maior não existe mesmo no sofrimento do que viver por um sentido vivendo conseqüentemente. A tua felicidade não consiste no quanto tu possas fazer, muito menos no quanto tu possas ter. A tua felicidade consiste em que tu, enquanto ser em constante devir, transborde teu compromisso des-int-essado na relação Eu-Tu, por uma maneira de viver, num jeito de perceber, numa forma de encarar, numa maneira de ser e de testemunhar, coisa que nada nem ninguém de ti poderá tirar. A tua felicidade consiste em viver laços de reciprocidade. Levando a tua prática baseada numa ética de alteridade, a tua vida se tornará plena de sentido, porque, a partir do outro, mesmo na sua diferença, tu poderás crescer com quem mais próximo ou distante estiver de ti, guarda bem o que te digo. Vive, pois coerentemente todos os momentos da tua existência - não te percas disso em nenhum momento; guarda isso com sabedoria em forma de ciência. A tua felicidade consiste em viver o que dá sentido e não em fazer dos teus atos o que as palavras, depois, farão desmentidos. Pois, desta forma, não terias porque continuar, desta forma não encontrarias felicidade mesmo que tudo a teu dispor tivesses ou tudo a teu querer pudesses realizar. Felicidade tem um nome - viver um sentido -, e o sentido acontece pela verdade plena que não desdiz os teus atos em forma de desmentido.

Considera, pois, o que te digo: o amor, que é tanto servo quanto amigo, tanto é sábio quanto humilde, seja, em tudo, a condição de que não venhas sofrer o sem sentido de viver só por viver. O que torna a alma vazia, fazendo-a estarrecer, vem pelas asas da solidão acompanhada, a mais sentida e pouco nomeada, cujos atributos formalizam o contexto do desamor: frieza, mesmo quando no calor; esvaziamento (tristeza), mesmo quando em meio a risadas; indiferença, malgrado apelos por compaixão reiterados.

Que o amor a ti volte e em ti faça morada. Mesmo sem ele, não te revoltes. Do contrário, não sobreviverás e, do que sem ele presumir-se construir, não restará nada. Ele é o ar que se respira, aquilo de que mais necessita a alma. O amor, alguém já disse, é como chover em terra seca: faz sentido. No final, perceberás que, somente o que tiver sido feito por amor e no amor terá valido a pena; o resto terá sido somente muito cansaço.

Aquilo que não conta e que não dá desconto, que não encanta e nem faz cantar, aquilo que não faz conta das próprias contas e das penas a pagar, só no amor sentido há de encontrar. Acredita: só o amor vale a pena de amar. O amor é o princípio e o fundamento da ética da alteridade.

“Não te esqueças de que tu és o outro de teu próximo”

(Pe. Airton Freire)

servo menor