O VELHO RELÓGIO DA CASA

Hoje volvi os olhos para ti, mas não respondeste a minha pergunta.

Estavas parado. Entao sentimentos muito difíceis de serem descritos apoderaram-se de mim, pois compreendi ó velho e querido amigo, que também estavas cansado de marcar as horas incertas da vida.

Senti a casa vazia e silenciosa sem o teu aalegre tique-taque, e sem as tuas sonoras badaladas.

A saudade chegou e recordei...

Eras tu que na quadra despreocupada da infância me apontavas a hora do despertar, da escola, das brincadeiras, do deitar quando eu dizia

a bênção, papai,

a benção, mamae,

e chuvas de bençãos se derramavam saobre a ditosa menina que era eu.

Nao tardaste a marcar a dourada e jovial e mocidade. O amor que tal um dourado sol surgiu em minha vida, enchendo-a de luz. O dia do comprometedor "sim" que ante o florido altar de Deus, confiei o meu destino ao homem que amava.

Marcaste as horas de venturas e dores quando meu filhos chegaram ao mundo. A hora das mamadeiras, do banho, as horas aflitivas das enfermidades próprias da infância. E durante muitos anos ficaste a fazer para eles, o mesmo que havia feito por mim, e eles tambem habituaram-se a te consultar, e tu a indicar-lhes o que devia ser feito.

E durante muito anos marcaste horas de risos, de bricadeiras. do agradável convívio do lar, do doce aconchego da família.

Mas um dia chegou em que aquelas mão que te davam a corda, aquelas mãos que eu amava, e que tu amavas também, infinitamente distante estava agora de nós.

E essa ausência que me dóia, doeu em ti também, e como num protesto te recusaste a trabalhar. Mas persuadido pelo carinho das minhas mãos, retornaaste ao cumprimento do dever, pois não obstante seres tão somente um relógio sabias o que os seres humanos não sabem, ou fingem não saber, que um amigo não abandona o outro na hora da dor.E marcaste-me muitas outras horas, horas agora incompletas e de fugidias alegrias, horas de preocupantes incertezas, horas de saudade... sempre de saudade.

Contudo hoje sentiste toda fadiga das passadas horas. todo desencanto de prosseguir, e quiçá temeroso de ainda ter de assinalar em meu viver, outras cruéis horas, decidiste parar.

E agora ao te fitar parado e silencioso, compreendi tudo que sentiste, e te amei mais ainda.

E através dessas pálidas linhas que nem de longe lograram o Muito, e o Tudo que representaste em minha vida, envio-te o meu sincero e muito comovido Muito Obrigada, pelo leal amigo e companheiro que sempre soubeste ser.

E muito ambora a saudade imensa que estou a sentir do teu alegre tique-taque, e das tuas sonoras badaladas, concordo que continues parado , que mais nunca voltes a trabalhar, pois sei, e tu sabes também, que jamais voltarás a marcar as iluminadas horas do,

a bênção, papai,

a benção, mamãe,

o beijo da boa -noite, meu amor,

bem como todas as horas despreocupadas do passado...

Maria Amélia