Querido Rivo
Querido Rivo,
Não sei onde você está agora.
Como em geral acontece não tenho mais seu endereço. Você sempre viajou muito e estava sempre em algum lugar diferente. Agora penso que você não queria somente conhecer outros lugares ou voltar para alguns outros, porém, queria estar com outras pessoas, pois as pessoas em geral se fixam em lugares determinados. Você ia à procura delas, mesmo sem ter conhecido antes.
Rivo, aconteceram tantas coisas desde que você se foi. No entanto, de mudanças você soube deveras. Vou lhe falar de permanências, então.
Sabe, amigo, o sol continua a brilhar, por vezes mais, por vezes menos, principalmente aqui em São Paulo, por entre as ruas cheias de prédios altos.
As flores, as flores ainda atraem as abelhas, os insetos e as atenções. Continuam as mesmas com suas cores e preferências. Você acredita que só recentemente descobri que os girassóis têm, pelo menos, duas cores diferentes no seu centro ou miolo? Descobri na banca que fica do lado da Igreja de Santa Cecília, lá tem umas flores lindas, mas todas são caras, não são como as silvestres que estão ao alcance de quaisquer mãos, inclusive das crianças.
O céu, da mesma forma, continua ou azul ou com nuvens brancas ou carregadas de chuvas e à noite com a lua e cheio de estrelas.
Marcelo continua em Nova York há vinte e quatro anos. Não sabe mais do Renê, seu grande amigo cubano e colega de opereta em Madri.
A dengue continua fazendo suas vítimas temporárias ou fatais. Ainda agora o carro do fumacê da Prefeitura passou derramando veneno contra os mosquitos e mais poluição no ar para nós, nessa Sampa tão poluída que você amava por sua diversidade em tudo, inclusive na cultura e com muitas bibliotecas.
Ah, sim, as bibliotecas, continuo um leitor assíduo das bibliotecas, esse santuário do saber. Frequento a Biblioteca Municipal Mario de Andrade, as dos SESC Bom Retiro e 24 de maio, todas aqui na região central. Sabe que estou lendo mais poesias agora? E escrevendo também. Lembra que eu lia mais livros de tratados filosóficos por ofício e mais romances e contos? Agora leio mais poesias, mas pretendo mesclar com os livros de outros gêneros de literatura.
Disse que iria falar somente das permanências e já falei das mudanças. Você sabe como sou inconstante.
Você nunca mais me escreveu umas daquelas suas lindas cartas. Mas quase ninguém escreve cartas atualmente, estamos todos num aplicativo de conversa instantânea chamado whatsapp, essa sim é uma mudança e tanto. Porém, entendo você, o filho do Senhor de barbas brancas dissera que há um abismo entre aqui e aí onde você está e por isso, toda espécie de comunicação é interditada.
Lembro que na sua despedida daqui, o monge leu um Salmo que dizia mais ou menos assim: “Como um tecelão teci a minha vida.” Achei tão próprio para expressar sobre suas andanças. Lembro que você gostava de ler versos de São João da Cruz e de Santa Terezinha de Lisieux.
Suas cartas para mim eram epístolas e contêm um grande valor literário, além do valor afetivo, é claro. Seus escritos estão guardados. Acho até que vou publicar, com seus créditos, é claro, na internet. Espero que você aprove minha decisão. Porém, talvez não seja tão já, tenho que me programar para isso.
Marcio e eu nos lembramos sempre de você, ele lembra datas com dias, meses e anos. Acho até que lembra de horários. O dia que saímos os três para ir ao Ibirapuera ver uma das Bienais de Arte, lembra? Eu só lembro que fomos e você estava cansado com sua dificuldade de andar, porém a data exata não lembro, pois Marcio lembra. E de várias outras datas. Foi ele quem descobriu a Toca de Assis onde você foi cuidado pelos monges, lembra?
E lembro das suas considerações sobre a montagem da peça de teatro As Criadas de Jean Genet, sobre os filmes Orfeu da Conceição e filmes de Carmen Miranda cantando.
Você continua falando em português, espanhol, francês, inglês e italiano? Ou aí onde você mora agora é preciso falar outra língua? E ainda canta com a voz parecida com a voz de Nelson Rodrigues, Francisco Alves e Silvio Caldas? Decerto também entoa o canto gregoriano, pois sim, deve ter aprendido com os monges na Toca de Assis.
Você continua desenhando e pintando com lápis de cor no papel? Lembro que você gostava das pinturas de Paul Klee. Lembra quando vimos a exposição das instalações artísticas de Bill Viola no Centro Cultural Banco do Brasil no centro do Rio de Janeiro? Aliás, você me apresentou a cidade contando histórias de quando trabalhou na Rádio Nacional e nos teatros próximos à Praça Tiradentes.
Meu amigo, quantas saudades. Lembro do dia em que você disse: “C’est fini”, com seu jeito irônico e niilista em relação a tudo e eu cocei sua cabeça, pois sabia que você estava dizendo uma das maiores verdades que você já havia dito. E olha que aprendi muito com você, sua erudição e experiência cultural me enriqueceu muito. E dias depois soube a notícia que você fez a viagem.
Talvez lhe escreva outras cartas, talvez não, pois sei que pode ser que você nem leia mais e com certeza não vai me responder. Porém, quem sabe você peça a Hipnos para deixar Morfeu me trazer uma carta sua. Se isso acontecer, vou ficar contente. Com certeza você deve enviar também abraços para Marcelo, Marcio e a família de Marcelo.
Bom dia, amigo.
Vou voltar para meus afazeres.
Do seu amigo,
Rodison.
P. S. Eu e Marcio agora, sempre que podemos, vemos várias peças de teatro e a última que vimos foi Tarsila, a brasileira, com Claudia Raia. Fomos ao teatro nesse dia com Antônia, uma amiga companheira. É com ela que vemos essas peças e vários shows de cantores, o penúltimo foi o de Elba Ramalho e o último foi o show de Chico César, maravilhosos.
Rodison Roberto Santos,
São Paulo, 19 de junho de 2024.