UM ANO...
Mãe: toda consideração é pouca... quando a perdemos.
Agosto sempre foi um mês considerado enigmático. Na minha terra, por meio da educação de minha mãe, desde cedo, fui ensinado sobre as difíceis compreensões deste mês: é (era) o mês dos cachorros loucos. Lembro-me bem que em um determinado período histórico da minha vida, lá no meu contexto, era o mês em que todos os caninos deveriam ser vacinados contra a raiva. O fenômeno, vez ou outra, era transferido para os humanos. Quando alguém não estava em seu estado típico, e ainda no mês de agosto, era associado e rotulado ao fenômeno, como os caninos.
Mês de agosto era (e continua sendo) época de ventos muito fortes nas paragens do sul. Ao estar na roça, lá no fim da gleba (dort an der Spitze des Hügels), lavrando a terra eu me permitia olhar ao longe percebendo no dia a dia que os horizontes eram paulatinamente pintados pelas nuvens de fumaça que se formavam a partir das queimadas das roças que estavam sendo preparadas com a entrada da primavera, época de plantar a maior variedade de sementes.
Agosto também é mês de um frio diferente no sul. Transição do inverno à primavera. Os ventos são singulares. Dizem que este frio, o vento e o tempo e demais características naturais do evento, de alguma forma influem sobre a vida e a morte das pessoas.
Foi assim, em um 13 de agosto de 1983 (há 34 anos), em um sábado, véspera do dia dos pais, que meu pai faleceu. Meu pai representa uma história de coragem e resignação que minha mãe teve de carregar e reconstruir que não deseja ser contada. Pouco se sabe entre as gerações seguintes sobre os sofrimentos que minha mãe teve de enfrentar por conta da doença paterna. As dificuldades, até de subsistência, rondavam mamãe e os quatro filhos dos quais eu como mais velho fui o responsável para cuidar deles enquanto a mãe – o pai ainda vivo em alguns momentos ajudava –, estava na lavoura para que a comida na mesa fosse possível. Nos períodos de doença e afastamento do pai para tratamentos mais demorados somente a mãe não dava conta da empreitada da vida. Lembro (creio ser uma das mais remotas lembranças), devia ter 4 anos, não estava ainda na escola, quando em um destes momentos em que o pai fora afastado para tratamento clínico na capital, o seu Bertino (professor que a todos da minha geração ensinou comportar-se como gente – mesmo que vez ou outra isso nos escapa, pois somos junto com a educação empurrados pelos motivos (nossos e dos outros) ao comportamento – anunciou durante uma missa dominical que a comunidade estava sendo convocada para ajudar a família do Sr Alvis Schitz, pois estava precisando de socorro. Imediatamente na semana seguinte, nunca me esqueço, nossa roça estava cheia de gente para cuidar e ajudar arar e plantar para atenuar o sofrimento que minha mãe enfrentara para cuidar dos 4 filhos pequenos. Essa situação repetiu-se muitas vezes. Não fosse a fraternidade da comunidade, talvez a fome e outras misérias decorrentes teriam impedido de chegar à história que minha mãe construiu ao longo de sua vida. As histórias de sofrimento e desafios que minha mãe teve de enfrentar por causa da doença de papai são tácitas. Não são contadas. São lembradas por quem as viveu. São marcas que povoam meu inconsciente e dos meus irmãos e vez ou outra reaparecem em comportamentos irruptivos e incompreensíveis que só podemos encontramos alguma luz e entendimento quando vamos em busca de nos situar no passado e associá-los à educação familiar, pois todos os comportamentos são aprendidos, com exceção dos instintos e reflexos. Apesar de tudo, papai sempre tentou nos educar da melhor e mais sincera forma de sua compreensão, ainda que essa forma não fosse a mais correta.
Foi igualmente no mês de agosto, dia 23, um ano hoje, que a mãe Natureza levou nossa mãe terrena. Falar dela é difícil...
A maturidade de vida, mas especialmente a maturidade cognitiva, permite-me rever e assumir de onde venho e o que fizeram de mim. Tenho de minha mãe a generosidade e o altruísmo que me são inerentes quando percebidos e possíveis. Igualmente compreendo que do meu pai tenho um lado agressivo que vez ou outra se descola das profundezas inconscientes, especialmente quando fomentado pelas vicissitudes e violências simbólicas alheias. Reside nesse histórico a minha preferência ao isolamento, à temeridade de me envolver em relações e conflitos discursivos e outros emaranhados comportamentais, pois há muito tempo estou em processo de me conhecer melhor e, diante dos saberes auferidos e constituídos, preciso posicionar-me frente à vida. Nada tenho; tudo me foi dado, principalmente quem sou. Preciso aprender ser o outro, pois eu – mesmo – não sou.
Da mãe lembro mais que do pai. Todos os filhos são reservados, calados, na ‘nossa’. Temos isso dela. Queremos justiça, mesmo que não a compreendemos à luz humana, herdamos isso dela. Nunca nos tratou com violência, talvez porque via o quanto papai usava da violência para nos educar. Era de uma mansidão exemplar que, ao menos para mim, encarnou-se. Prefiro me afastar e silenciar do conflito e sem uma palavra, remoer sobre aquilo até que, para mim, o discernimento me situe. Reflexo da mãe em seus cantos quando não queria aumentar ainda mais os conflitos inevitáveis nas relações humanas. Lembro-me das inúmeras vezes que minha mãe chorava em silêncio nos cantos para digerir o que a vida não lhe permitia compreender.
Sou teimoso, não por conta da minha natureza. Mas por conta da minha mãe. Considero a minha teimosia uma dádiva, mesmo que prejudicial e incômoda em muitas circunstâncias. Nesse sentido, sou minha mãe escrita e descrita. Lembro-me das muitas vezes, dos muitos dias em que ela ficava circulando nos seus reservados espaços, quietinha até que dentro dela situava os fatos perturbadores da vida e tentava ser o que sempre fora: uma mãe guerreira.
Não há mãe melhor que a nossa. E cada uma, a sua maneira, em sendo mãe, inscreve na subjetividade de seus filhos o que de melhor existe em um ser humano, a vontade de servir, de ser, de se dar, de ver o outro ser feliz e estar bem. Minha mãe rompia qualquer barreira para ver seus filhos estarem bem. Mediava os conflitos por meio do silêncio, da oração e conselhos da experiência. Amava-nos de uma maneira singular. E nos passou essa singularidade como se fosse genética. Somos fenômenos comportamentais estranhos para muitos que nos julgam à luz de seus senhores conhecimentos, sem nada saberem da história que nos constituiu. Porém, éramos amados e venerados por nossa mãe, pois ela via em cada um de seus filhos o resultado de um esforço que ela enveredara a vida toda: deixar os filhos viverem à sua maneira, ainda que os quisesse sempre debaixo de suas asas. O seu jeito único de ser e estar no mundo, é e constitui-se o nosso ser único de nos representar para os outros. Somos filhos de uma mãe que não deve nada a ninguém. Foi uma mulher, uma mãe e companheira sincera, honesta e acima de tudo justa com a vida, que nem sempre se move na mesma direção. Ao seu amor e zelo devemos o que somos como filhos da Dona Lucila.
A minha (nossa) mãe a gratidão perene e permanente. Que a Providência a beneficie com o que a Natureza nos reserva de Eterno. E se a complexidade do universo permitir um reencontro desejaria unir-me a ti para constituir outro ser qualquer do cosmo, desde que me permitas pertinho do colo carinhoso que simbolizas chamar-te Minha Mãe!