A MORTE ESCOLHE ALGUÉM PRA FALAR

(em memória de Antonio Irajá Becker, securitário, irmão maçom e poeta)

A morte escolhe o calvário de penas.

Morreu o poeta com sua carga de relatos. Por certo a humanidade restará menos fantasiosa, menos sonhadora, mais pobre de estímulos para viver.

Escorre vida sob os pés cansados. Vento e chuva retratam o espírito triste. O que se perde em meio á água que corre debaixo dos pés andarilhos?

Também é líquido o silêncio em meus olhos, e a vida se faz permanente nos trajetos. Caminha-se em nome de quem e do quê? Em nosso próprio pré-traçado destino?

Margearão a estrada dos acontecimentos aqueles que ficam nestas veredas do Rio Escuro. Personagens públicas ou não.

A luz só vem nesta hora bíblica de retorno ao pó, homenagem pela coragem anímica de andar.

A amizade antiga produz seu último recado. O sofrimento da perda produz o poema com o gosto amargo da lágrima. O andar dos tristonhos cambaleia vocábulos, sílabas e ritmos.

Preciso é conter o choro. Coragem pro coração pulsar vivo, amoroso.

A vida se aquece nos lazeres do sofrimento pleno. Vai permanecer em mim a bonomia do vinho do fim–de–tarde e o medo do aumento da glicemia.

Estranho: o doce no sangue antecipa a morte.

Ladino, o diabetes urdiu a sua trampa de misérias, a silenciosa seta coronária. A vereda ficou pequena, esvaiu-se aos poucos.

Sobraram rosas pálidas nesta quase primavera do Sul do mundo.

Há algum tempo, na mocidade, a flecha era a precisão de Cupido, o coração alvejado, as amadas nas clausuras do sentimento. Quanta possessão em nome do Amar ou do que dele se sabe.

É incerto, dúbio, o destino traçado pelas fiandeiras do fio de linha entre o nascer e o morrer.

Quantas setas cabem no alforje, agora, nesta quadra de atravessar o Rio da Morte? Haverá lutas, adiante? Quais os desafios que restam?

Partiu na barcarola de Caronte. Nela o poeta vai com uma vara de pescar, amansando as águas em busca de peixes. Isto ele sempre soube fazer. Era ali, na conversa com os rios e mares, que temperava suas agruras, seus fetiches de planos e sonhos. Seu assombro frente ao mar sempre foi precoce.

Vai, irmão, com tuas doçuras, medo, frustrações, vai com a tua poesia eviscerada de peixes e desejos, porque a vida, potente obra do Onisciente, te fará mestre no templo do Eterno.

Leva a moeda pra pagar a passagem de transposição do Rio Profundo.

Na outra margem, aquela da qual ninguém voltou, olha pra trás e abençoa os teus afetos. Não te vás aflito. Cumpriste tua parte dentro do possível de tuas lutas e assombros. Não sei se o teu legado foi apreciável para todos.

Os que ficam sempre têm o horizonte como chegada. Chegam estafados, vesgos de pó e invernias. Não têm como olhar para trás, rever a vereda transcorrida em si próprios.

O máximo que fazem é o olhar de esguelha pro lado, como o do potrilho que corre na cancha paralela.

Sempre alguém vai sair perdedor.

Os que te amam e sabem do valor de viver ficarão tranqüilos. Saberão, mais do que nunca, que o ganho da passagem é um permanente aviso:

– É preciso guardar a moeda pra pagar o barqueiro da vida, pois a morte é apenas a primeira parada na longa estrada do Eterno!

– Oração fúnebre lida pelo autor por ocasião das exéquias, em 10 de setembro de 2005, às 16 horas, no Crematório Metropolitano de Porto Alegre.

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre Prosa e Poesia. Porto Alegre: Alcance, 2008, p. 26:8.

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