O OUTONO DA MATRIARCA

Pelo caminho enquanto tudo ia passando vertiginosamente, na ansiedade da chegada e no medo do que iríamos enfrentar, olhei para cima. Surpresa e exultante vi que do céu, em brancas nuvens, ela sorria para nós e nos soprava um beijo daquele jeito que lhe era tão peculiar!

Para em seguida abrir as asas sobre nós e voar leve e solta como a grande mensageira branca derramando paz e amor em nossos corações, para que pudéssemos suportar o fardo pesado de aceitar a sua partida tão repentina e que todos acreditavam nunca fosse acontecer.

Mas aconteceu. O nosso símbolo de imortalidade, a nossa fonte de juventude secou. Nossa imortal Tia Grande com os seus decantados e bem vividos noventa e três anos, de que tanto se orgulhava e que pareciam lhe garantir esse status mostrou-se em toda a sua humanidade e feneceu.

Como uma flor em plena primavera ela surpreendeu e contrariando todos os prognósticos e frustrando todos os prematuros planos dos que lhe amam e egoisticamente queriam tê-la para sempre ao lado, bateu asas e voou para outra estação. Para o outono, o outono da matriarca.

É certo que a saudade ficou em nós. Para sempre as lembranças boas vamos cultuar. As suas tiradas engraçadas e irreverentes ainda vão ser repetidas nas rodas de conversas, nas mesas de bares onde houver uma cervejinha gelada e um prato de batatas fritas, bem ao seu estilo.

E assim, como a tradição popular a história gloriosa de uma pessoa que soube como ninguém conquistar o amor, a admiração e a simpatia de todos que com ela tinham o prazer de conviver vai ser transmitida de geração em geração até virar lenda, a lenda de uma mulher imortal que viveu na cidade de Martins uma vida plena, cheia de vigor e alegria.

Uma mulher que tinha quase cem anos e pensava e vivia como uma jovem madura de trinta mas com a cabeça voltada para o futuro e antenada no presente, uma cidadã de um mundo globalizado capaz de acompanhar toda a evolução tecnológica.

E a sua gargalhada, que marcou de forma tão definitiva a sua personalidade, vai se eternizar em cada um de nós e continuar ecoando pelas ruas de Martins como um chamamento para a alegria e a felicidade por muito tempo ainda, enquanto houver um coração sensível para escutar e entender o seu significado.

O corpo de noventa e três anos traiu o espírito jovem que fazia planos para um futuro próximo, quando chegaria a comemorar um século de vida, que era o seu maior orgulho.

E deixou nos corações dos que a amam a certeza de que muito ainda tínhamos para lhe falar e principalmente muito a aprender com a sua sabedoria.

As lições de vida com certeza nunca esqueceremos. E feliz de quem souber delas tirar proveito para viver não importa quantos anos, e se imortalizar no coração de alguém como ela o fez com milhares de pessoas que nunca deixarão de lembrá-la e amá-la. Para sempre. Eternamente. Até que voltemos a nos encontrar num outro plano para muitas gargalhadas juntas.

Cessou o tempo do choro. Uma nova estação. Voltou a primavera.

Alegria. Alegria. Amável alegria.

Até lá minha tia xará. Orgulho do meu nome. Espelho da minha vida

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 14/05/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2256472
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