Lembranças da Casa do Vovô

Dos tempos idos, recordo saudosa da casa do vovô Aluisio e da vovó Júlia. Na casa dos meus avós paternos repousam parte da minha história, registros de minha infância. A casa do vovô localiza-se nas paragens de Rio do Campo, como o próprio nome sugere, é uma cidadezinha com muitos rios e campos. E foi lá nos verdes campos de Rio do Campo que vivi momentos de intensa alegria, intensa liberdade! A infância por si só já traduz vida em liberdade, amor em realidade.

Lembro-me, sem esforço algum, de cada curva de pasto da morada do vovô, lembro-me ainda, da profundidade das lagoas turvas, nas quais eu sempre mergulhava em aventura proibida.

A riqueza de detalhes que guardo, misturam-se a saudade, então os reescrevo para me transportar novamente aquele lugar, a escrita proporciona isso.

Os detalhes nas porteiras, os currais onde via vovó com suas mãos finas tirar leite das vacas, a caça as galinhas, esquecer por vezes a porteira aberta para ver o gado fugir, as aventuras secretas no precipício da cachoeira, hoje sei que crianças têm a permanente proteção de anjos.... Os dedinhos da vovó apertando de leve minhas orelhas, tais lembranças pulam dos meus dedos, massageiam os teclados, como criança peralta querendo brincar, arranhar as lembranças é voltar a sonhar, é pegar o trem rumo a nascente cristalina de onde brota a história de cada um de nós.

O vovô Aluisio costumava sentar-se num velho caixão de lenha, onde calmamente preparava seu cigarro palheiro, lembro-me que passava a palha do cigarro sobre os lábios finos e ajeitava cuidadosamente o fumo entre as palhas, enquanto vovó preparava na cozinha o jantar. Os olhos do vovô eram azuis celestes, suas mãos eram finas, iguais a da vovó, seus dedos calejados do trabalho na roça, seus cabelos brancos da cor de neve, era magro e alto, o vovô era um homem elegante, parecia também, ser feliz.

Eu e minha irmã Juliana ficávamos as voltas do vovô, ele contava estórias de terror, de fantasmas e luzes vermelhas que cortavam os pastos em noite alta. Morríamos de medo, mas sempre queríamos ouvir mais, vovô Aluisio, hoje sei, era um exímio contador de histórias. Além das escabrosas estórias de terror, havia também uma canção em alemão que ele cantarolava para nós, contudo a letra fugiu-me a memória, guardo apenas a melodia.

Vez por outra a vovó Júlia ralhava com ele, penso que ela não queria que ele nos assustasse com suas estórias, temendo a noite que não dormíssemos.

Alguns detalhes da casa do vovô e da vovó permanecem vivos minha memória, algumas mobílias, a velha tevê, a varandinha cheia de folhagens, o cachorrinho de pano, o sofá da sala, o quarto deles com duas camas, a caixinha de grampos dourados da vovó, o cheiro do talco que ela usava.

A sopa da vovó era pintada de verde, de cebolinha, tão saborosa aquecia-nos a alma, ainda hoje não digeri a lembrança deste tempo. Vovó ainda preparava um capilé de groselha, era tão doce, tão doce, que adoçava até a alma.

Nas noites escuras do campo, vinha uma batucada das lagoas, sempre me diziam tratar-se de sapos-boi. Ah, esses tais de sapos-boi povoavam minha imaginação, ficava na cama imaginado que os bois, durante a noite, transformavam-se em sapos, e todos na lagoa tocavam tambor para os peixes dançar.

Nos prados amanhecidos do Rio do Campo, desenhei histórias e aventuras, rabisquei no chão livre de outrora meus sonhos, meu retrato. Mal sabia que ensaiava a despedida do melhor tempo da minha vida, estamos sempre ensaiando uma despedida, a vida é isso, chegada e partida. Queria ter hoje em minhas mãos, uma resenha do olhar azul do vovô, um áudio daquela velha canção cantarolada em meu coração, mas não os tenho, nem avôs, nem infância, nem o calor da brasa quente queimando no fogão a lenha.

O velho fogão a lenha aquecia as manhãs e as noites invernais, da chaminé, naqueles tempos, espraiavam-se as nossas vidas, a fumaça era bailarina dançando nos céus a despedida, não nos dávamos conta disso, mas assim o foi, se foi, cada um deles, cada um de nós.

Nada há nada que iguale aqueles velhos tempos, nada há que a vida adulta trouxe que compita com as aventuras e amores vividos em minha infância.

Meu coração pulando em meu peito batuca minha canção, ensaiando novamente, a despedida, cada pulsar lembra-me a menina dentro de mim pulando, querendo sair, voltar a brincar. Um dia essa menina incontida pulará tão alto em meu peito e fugirá pelo brilho adormecido do meu olhar, voltarei aos velhos tempos. O primeiro a partir foi o vovô, quando o vi no leito, com sua face coberta com paninho de renda, não senti tristeza, algo em mim não se despedia, sábio o coração de criança. Enquanto meu avô era velado na sala, eu brincava nos pastos, corria nos verdes prados da esperança, sepultando meu velho com alegria. Senti falta do vovô tempos depois, quando via o caixão de lenha onde ele costumava sentar, quando queria lembrar a letra da musica em alemão, e não havia mais vovô para lembrar-me a canção.

Depois da morte do vovô, a vovó foi ficando amarela, sua cama, suas roupas, onde ela tocava ficava amarelo, foi adoecendo.

Eu acreditava que ela estava ficando amarela de saudade do vovô, acho que foi mesmo, quinze dias depois a vovó se despede de nós.

Sempre pensei que quando sentisse muita saudade de alguém ficaria amarela, como vovó Júlia, hoje eu sei que saudade não tem cor, que bois não se transformam em sapos, e que lembranças não morrem, jamais são sepultadas no coração de quem ousa sonhar!

No lugar do vovô e da vovó ficou tia Alzira, velando as lembranças daquele lugar, semeando esperança no seu cativo olhar, cedendo espaço para muitas aventuras que por lá realizei, mas esta é uma outra história.