Marcas da ausência

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Marcas da ausência

Tenho percebido que os olhares que damos para nossos problemas são olhares apenas nosso – íntimos e pontuais. Pontuais no sentido de que, apesar de existirem infinitos caminhos, escolhemos um que se tornará nossa percepção individualizada da realidade que criamos, a fim de justificar nossas ações e reações diante dos acontecimentos da vida, notadamente reveses e conflitos.

Recordo-me de um casal amigo que me procurou – eles não vieram juntos, mas cada um, individualmente. Ouvidos atentos, eu os escutei, auscultando-lhes o coração das confidências. As ranhuras do medo, que lhes agrediam a alma, refletiam nas relações familiares e sociais de ambos.

Homens, penso, somos mais difíceis de abrirmos as travas da intimidade. Normalmente sofremos calados. Talvez por isso exista tanto extravasamento em jogos de futebol. Lá, durante as partidas, podemos xingar a mãe dos árbitros, esbravejar palavrões quando jogadores do time que torcemos erra um passe, perde um gol... Curtir um pouco da psicologia das multidões faz bem a muitas almas errantes e irrequietas. Portanto, ter tido a honra da visita do casal de amigos e poder compartilhar, em silêncio, sem emitir nenhum julgamento, as confidências que deles ouvi, serviram para minhas próprias reflexões. Lamentei não ter puxado um divã, mas mantive-me fora do ângulo de visada dos analisandos, dando às visitas um mínimo de privacidade verbal – na realidade, queria sentir-me imerso numa sessão psicanalítica, cumprindo o ritualismo que a situação exigia para leigos. Afinal, os ritos pressupõem formalidade e dão caráter de pompa a toda orquestração do gênero humano. Estávamos a sós, guardaria segredo quase sepulcral do que ouviria, mas faltou o divã.

Primeiro ato

Ele chegou. Sentou. Ignorou minha existência e começou...

Estou muito confuso, inseguro. Envolvi-me com uma mulher, estou completamente apaixonado, mas esta semana, quando saímos, ela me surpreendeu com declarações que me deixaram espantado. Antes de qualquer manifestação de carinho – não tive direito sequer a um abraço, gesto singelo, mas que me cativa demais –, simplesmente fui alvejado com um rosário de recusas e esquivas que conflitam, diametralmente, com meu modo de ver e entender nossas ausências. Quando viajo e nos distanciamos, fico revendo fotos dela, rememorando nossos momentos a dois; dou gargalhadas sozinho, recordando brincadeiras pueris que construímos; lembro cada gesto, cada sorriso e cada instante de tudo que vivemos. Com o tempo, essas lembranças têm tomado cada vez mais do meu universo e me percebo, hoje, completamente envolvido no mundo invisível das aspirações. Já temos uma história, muitos planos e vários sonhos. O que me magoou, porém, foi ter escutado que nossa relação está causando dor, angústia. Não consigo entender como algo que é tão bom pode causar sofrimento e suscitar o desejo de se desligar, esquecendo o que se viveu. Enquanto preencho as lacunas da distância, lembrando tudo que foi bom e me regozijo, ela simplesmente me confidenciou: “Durante sua última viagem, tentei me desligar de você e mudei o foco das minhas intenções. Estou diferente, não sou a mesma mulher que você deixou, antes de partir”. Não consigo entender que sentimento se nutre da fuga, que amor se quer provar, desistindo e dando adeus. Creio no ‘mutacionismo’ de Heráclito, na percepção de que nós nos transformamos, continuamente, e que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Creio, também, nas identidades imutáveis do ser e do não-ser de Parmênides; que somos unos e meras ilusões de nós mesmos. Entretanto, apesar do vir-a-ser tornar-se busca permanente, quero, entre o plantio e a colheita, entre a vida real e a ideal, o que a vida me proporciona de mais significativo: meus indelegáveis momentos de felicidade! Não tenho mais a ilusão da felicidade plena, mas não abro mão dos momentos felizes que posso e devo ter – e que dependem exclusivamente de mim! Viajei, deixando saudade, levando possibilidades, criando expectativas de voltar e amadurecer nossas intenções, consolidando laços. Retornei ainda mais saudoso, contando os segundos para o reencontro, desejando rever o sorriso que me encantou. Desembarquei insípido, buscando resgatar o cheiro – dela – que levei apenas comigo (arrumadinho e bem passado) no armário das minhas sensações recentes. Liguei, quis confirmar o encontro. Do ouro lado, desinteresse, incertezas, modificação de lugar e horário – imprevistos que me pareceram intencionais. Ao final de tudo, o carinho e a atenção foram trocados por declarações de medo, fuga, angústia e uma necessidade quase imperativa de desistência – tudo isso com respaldo no amor. Não entendo esse amor que foge, que quer dar adeus por causa das contrarrazões da vida.

Segundo ato

Ela chegou. Sentou. Cruzou as pernas – percebi esse detalhe. Ignorou minha existência e começou.

Estou muito confusa, insegura. Envolvi-me com um homem, estou completamente apaixonada, mas esta semana, quando saímos, ele me surpreendeu com declarações que me deixaram espantada. Estava morrendo de saudade, quis me jogar nos braços dele, abraçá-lo, beijá-lo, falar o quanto estava com saudade, mas, por medo de demonstrar o que realmente sinto, simplesmente desabafei. Não estou suportando mais nossa situação de chegadas e despedidas. Quando estamos juntos tudo é maravilhoso. Ele me completa, entende, valoriza, ajuda, dá conselhos, cuida de mim e de todos os meus medos, mas sempre precisa partir e me deixa sozinha por alguns dias. Aqui, fico vivendo e criando expectativas em função dele: faço planos, tenho sonhos. Cansei disso. Quero uma definição, precisamos definir o que queremos, se permaneceremos juntos ou não. Não dá mais para continuar como está. Na última viagem que ele fez, esforcei-me para me desligar do que vivemos: não pensei nele, saí com amigas e amigos, fui a festas, aniversários, churrascos, revi pessoas que me interessavam, conversei com outras pessoas, abri algumas portas – não conscientemente, mas abri. Como costumamos falar, basta um “Oi!” para que alguém se aproxime. Sim, dei muitos “Oi!” durante o período em que ele se ausentou... Contei tudo a ele, num único gole, a seco, inclusive durante nossos momentos mais íntimos. Quebrei o clima, falei que não estava a fim e o empurrei. Tentamos retomar os carinhos, mas, do nada, fiz uma pergunta sem nexo que ele entendeu e se chateou. Tentei desconversar depois, quando ele tocou no assunto, mas expliquei do que se tratava, foi mais uma porta que poderia ter aberto – Acho que não abri, mas acabei abrindo. Por que devo ficar revivendo o que foi tão bom? Para sofrer? Devo mesmo é me desligar dele. Recordar todos os momentos bons que tivemos só tem me feito padecer. Não quero sofrer mais. Já sofri demais na vida. Fui muito humilhada, traída, desrespeitada, menosprezada. Suportei tudo com resignação, acreditando que seria feliz. Recordo todas as angústias que já passei sem sentir nenhuma dor, perdoei. Quero e vou parar de pensar nos momentos únicos que ele já me fez viver. Em pouco tempo, já realizei sonhos que julgava distantes, ele transformou tudo em mim, mas não quero mais, não esperarei mais. Serei grosseira, intolerante, chata, estarei indisponível. Decidi que não devo pensar nos bons momentos da vida – isso faz sofrer. Tentarei refazer minha vida, sem ele. Hoje, mais uma vez, fui grosseira. Devo ser assim, vai ajudar na decisão que tomei de afastar-me dele. Não entendo esse amor que foge, que não quer ficar junto por causa das contrarrazões da vida.

...

Talvez eu esteja julgando olhares alheios, condenando o amor; coroando o descaso e a indiferença. Talvez eu esteja diante de olhares divergentes, com pontos de congruência. Talvez estejam falando de pessoas estranhas – quem sabe sejam outros os atores sobre os quais falaram. Quem sabe. Talvez minhas percepções das realidades alheias estejam contaminadas pelas minhas próprias experiências, mas ficou apenas uma indagação: Quem estaria com a razão?

Iguatu-CE, 3 de junho de 2016.

15h30min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 03/06/2016
Reeditado em 26/12/2020
Código do texto: T5656071
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