No íntimo de Salomão - Ec4
Como já comentamos anteriormente, Salomão não teve um bom relacionamento consigo mesmo. Toda sua sabedoria pedida e concedida por Deus serviu – poderíamos assim dizer!? – como uma armadilha para si mesmo.
Algumas palavras ditas por ele em meio à sua desconsolação falam muito dele mesmo, como que um desabafo à posteridade.
“Há um mal que tenho visto debaixo do sol, e é mui frequente entre os homens: um homem a quem Deus deu riquezas, bens e honra, e nada lhe falta de tudo quanto a sua alma deseja, e Deus não lhe dá poder para daí comer, antes o estranho o come; também isto é vaidade e má enfermidade” (6:1-2).
Salomão recebeu seu reino ‘de mão beijada’. Não teve que travar luta contra vizinhos hostis, não teve que se submeter a um rei carnal chamado Saul por longos anos, como seu pai Davi, até que Deus o vingasse de toda a injustiça e usurpação. Não teve que fugir por terra estranha temendo pela sua própria vida. Nada sabia de noites frias e dias quentes cuidando de simples ovelhas.
Sua sabedoria era mais experimental que prática. A sabedoria deve estar alicerçada a um exercício constante sentido na carne, no medo, na angústia, na oração desesperada. Salomão não podia compreender nada destas coisas, ainda que Davi certamente tenha contado e recontado o longo drama de sua vida aos seus filhos. Mas ouvir não é viver.
Como ele mesmo afirma, recebeu tudo pronto, nada lhe faltou e nada esperou, nada sofreu e nada lutou.
Poderíamos parafrasear aquela palavra de Tiago – ‘a sabedoria sem provas é morta’.
E o que dizer do ‘estranho que comeu do seu trabalho’? Não poderia ele estar se referindo ao seu filho e herdeiro do trono Roboão, aquele que dividiria mais a frente seu reinado com sua arrogância, falta de humildade, bom senso para ouvir conselhos...?
Suas palavras ditas aos ouvidos de todo o povo mostram bem que sua intimidade com seu pai era mínima e com o Deus de Israel nem existia.
“Assim que, se meu pai [Salomão] vos carregou de um jugo pesado, ainda eu aumentarei o vosso jugo; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões” (1 Re 12.11).
Diferentemente de Davi que no leito de morte instruiu Salomão na justiça que deveria executar e andar, o contexto da passagem do trono de Salomão para Roboão inexiste. Foi o povo que o levantou como rei por seu direito de primogenitura, não pela escolha voluntária de seu pai, que provavelmente já conhecia bem a incapacidade de seu filho.
“E dormiu Salomão com seus pais, e o sepultaram na cidade de Davi seu pai; e Roboão, seu filho, reinou em seu lugar. E foi Roboão a Siquém, porque todo o Israel se reunira ali, para fazê-lo rei” (2 Cr 9.31; 10.1).
Acho que a suma de seu sofrimento, espalhado por este seu sombrio livro de Eclesiastes, concentra-se em uma confissão, mais do que uma simples observação de algum desconhecido.
“Há um que é só, e não tem ninguém, nem tampouco filho nem irmão; e contudo não cessa do seu trabalho, e também seus olhos não se satisfazem com riqueza; nem diz: Para quem trabalho eu, privando a minha alma do bem? Também isto é vaidade e enfadonha ocupação” (4.8).
Certamente que tinha muitos filhos e irmãos, como bem atesta a Escritura, mas era como se não os tivesse. Sua vida se esvaiu por suas mãos, porque elas se prenderam ao material, ao visível, ao transitório, como muitos em nossa sociedade vazia têm se perdido, mesmo amontoado de bens, filhos e propriedades.
A estes, o mesmo Salomão poderia dizer com autoridade e dor.
“É melhor um bocado seco, e com ele a tranquilidade, do que a casa cheia de iguarias e com desavença” (Pv 17.1). Ou...
“Melhor é o pouco com o temor do Senhor, do que um grande tesouro onde há inquietação” (Pv 15.16).
No fim, tudo é uma questão de escolha que produzirá os devidos frutos.
Toda esta agonia, este vazio existencial, sua solidão final, sua falta de sintonia com seus filhos – salvo melhor juízo – deriva de seus próprios erros do passado, iniciado na escolha de suas esposas. Ele mesmo se condenará por suas palavras.
Queira me acompanhar por gentileza neste próximo assunto.