RÉQUIEM para quase 500 mil mortos!
Eu não consigo fazer poesia
eu não consigo atravessar esse mar vermelho, fingir que está tudo bem,
eu não consigo fingir que não há sangue nas mãos que escolheram e seguem paralisadas, nas bocas mudas diante da mutilação de tantas perdas sem fim.
Eu não consigo fazer poesia,
eu não consigo dizer, e dai...
A saudade eterna de tantas vidas perdidas e a expressão de um dai,
eu não sou coveiro,
eu não tenho nada com isso...
eu não consigo fazer poesia diante dessa extrema, que se diz direita, e já planeia a próxima viagem de outros milhares, e dá gargalhadas de prazer enquanto passeia de motocicleta por cima da memória de milhares de mortos, vento na cara, destilando risinhos de prazer.
Eu não consigo fazer poesia. Esse é o momento da perfeita tradução da tão difícil conjugação entre o sentido de realidade e o gozo de viver.
Eu não consigo viver ou fingir que vivo passando por cima de tantos cadáveres de amigos, familiares, conhecidos e anônimos como se isso não fosse nada, e dai?
Eu não consigo fazer poesia nesse momento doloroso, sujo, irrespirável, ardiloso, perigoso...
Eu não consigo fazer poesia afundada nesse mar de mortes, de lágrimas e indignação...
eu não consigo...