A fabricante de lentes

Encontrei alguma ventura em uma companhia nova, pode-se dizer assim que já sejamos bem próximas. Essa minha nova amiga tem uma mania de fabricar boas lentes para minha visão já bem obscurecida pelo tempo. Fá-lo tão bem e tão rapidamente que lhe predico bons termos, como “eficiente, ágil e assombrosa.”

Pela manhã, ao primeiro raio de sol ela me coloca lentes amarelinhas e eu vejo o dia nascendo com uma sublime sensação de agradecimento pela oportunidade, pela brisa e, sobretudo, pelos passarinhos que cantarolam trinadinhos breves na copa de uma murta, pois fui também aparelhada para gostar deles.

Ainda cedo recebo alguns afetos totalmente espontâneos daqueles que meu ventre teve a beneficência de abrigar um dia, e a nobre amiga me enfeita com lentes de halo prateado, cuja suavidade me transmite uma paz de algodão, tão cheirosa e tão mansa que fico de pulmões inflados, quase evaporada, quase etérea de tão leve.

Depois sou apertada pelos abraços muitos, tão aconchegantes mãos de cuidado, mãos de carinho, tão acolhida pela vida que troco as lentes de vários graus por um grau só, o grau verdinho do otimismo com a lida, na toada nem sempre mansa, constantemente aguerrida e muito, mas muito mesmo, determinada.

Há dias em que me encontro em cólicas, dores tantas do corpo que percorrem dos pés às felpinhas do cocoruto, até pareço terminada, dissolvida, mas a amiga me dá lentes de confiança porque ela tem sabedoria de saber que tudo isso também passa e tudo se resolve haja o que houver.

Nas voltonas e voltinhas por aí, tantas pessoas diferentes, algumas parecendo sentir ódio do mundo, outras tantas – malvadonas – querendo dar o bote, julgando, achando graça em diminuir-me, humilhar-me, maltratar-me e também aos outros. É nessa hora que minha extraordinária fabricante de lentes me dá uma lente poderosa, a mais impressionante de todas, uma lente que revela almas, que deixa todo mundo transparente, uma lente que mostra feridinha por feridinha, tudo o que há de errado com o coração do outro. Então eu compreendo, com a lente chamada compaixão, que cada pessoa só dá o que tem nela. Se me ferem é porque estão feridos, se fazem o mal é porque estão usando lentes tão turvas que não podem sair do lugar.

Deparo com gente maldosa, que faz fofoca, que se mete a vida do outro com tanta propriedade como se fosse a própria, ou como se nunca errasse também. Enxergo o estômago de gente que engoliu um rei, ou que pensa que está carregando um na barriga, mas lá dentro só tem pereba mesmo, são as úlceras da raiva, da arrogância e da maldade. Que pena ver tudo isso! Por outro lado, ter acesso a tão valiosas lentes me faz compreender melhor as pessoas e poder fazer algo por elas e por mim mesma também.

De noite eu ganho uma lente bem sutil, lente de ver estrelas, lente de ver beleza. Vou enxergando a perfeição que é a minha vida nos dias bons e nos dias ruins. Porque vou compreendendo que tudo está no lugar certo, tudo tem um tempo certo e não há nada de errado em ficar triste ou chateada às vezes. É nessa hora que olho para mim mesma e vejo o quanto preciso melhorar e o quanto já progredi, é nessa hora que tenho orgulho de mim, mas é também quando conheço a fundo minhas próprias feridas e vou cuidando delas com os remedinhos certos. Uma dose de carinho, duas de ternura, quatro gotas de amor e um tostão de compaixão, fico toda agradecida por enxergar com lentes melhores toda vez que eu tento ver além e fico pensando... pensando...

Quero muito continuar essa amizade bonita com a minha fabricante de lentes, seu nome é bondade e eu a quero por mim mesma, porque ser boa me faz bem. Quem sabe um dia ela vem morar em mim?