O Potrinho e a borboleta azul
Quando se é muito jovem, viver é um leque de infinitas possibilidades, ou pelo menos era assim que eu pensava.
Havia em mim uma pressa que beirava a agonia... queria que minha história começasse o quanto antes... Queria transpor cercas, deixar para trás aquelas paisagens verdejantes que meus olhos repletos de sonhos e esperanças já não suportavam mais ver. Tudo era lindo, mas a até a beleza mais extasiante torna-se enfadonha aos olhos de um sonhador ansioso. Eu não passava de um jovem potro, tinha muito que aprender (era o que sempre me diziam), mas como disse, eu tinha pressa...
Os dias passavam na lentidão típica da vida no campo. Dos primeiros raios de sol a primeira estrela da noite eu esperava por algo que não sabia bem o que era, mas tinha certeza que reconheceria assim que acontecesse. Eu não via prazer na companhia dos outros potrinhos que trotavam alegremente, nem compactuava da admiração que eles dedicavam aos belíssimos garanhões puro sangue da fazenda. Eu não desejava ser mais um, eu queria ser diferente! Dentro de mim havia a convicção de que o mundo era muito mais do que minha vista alcançava.
Hoje, pensando bem, acho que a vida deveria nos enviar algum “sinal” de que mudaria drasticamente, assim estaríamos mais preparados, acho que seria mais justo. Mas a vida não é, nem nunca será uma coisa justa. Até alguém como eu, deveria saber isso...
E assim, sem sinais, sem sequer uma leve intuição, ela chegou a minha vida. Foi numa dessas manhãs preguiçosas de outono que ela apareceu-me pela primeira vez. Trotava eu displicentemente, quando ao passar entre duas cerejeiras enredei-me numa enorme teia de aranha, fiquei assustado e sai em desabalada carreira sem enxergar um palmo diante dos olhos.
-Calma potrinho! Ouvi.
Balancei um pouco a cabeça, agitei a crina, mas nada de soltar-me daquele emaranhado de fios, por fim, perguntei: - Quem é? Quem está aí? Pode me ajudar, por favor?
Sem nada responder ela puxou delicadamente um pouco da teia, descobrindo-me os olhos e eu pude olhar ao redor. Foi então que eu a vi... Não apenas uma borboleta, mas uma visão etérea em azul, lilás e dourado.
Ela era sem dúvida, a coisa mais bonita que eu já havia visto, fiquei sem palavras. Recuperei o fôlego e agradeci, ela sorriu gentilmente.
Balancei a cabeça com força e livrei-me do resto da teia, agora já meio sem jeito por ter sido um pouco tolo correndo daquele jeito. Acho que ela percebeu e quebrou o gelo:
-Muito prazer, meu nome é Victória, vem do latim e significa que nasci para ser uma vencedora e você, qual é o teu nome, potrinho?
Meu nome é tito, apenas tito, e não significa nada...
Balançando as asas graciosamente ela respondeu: - Não faz mal. Nem todo nome precisa ter um significado, concluiu.
Mas se você quiser, de hoje em diante, pelo menos para mim, teu nome pode significar “amigo”, e você pode me chamar pelo meu apelido, “gloriosa” ou simplesmente “glori” , o que voce acha?
-Tudo bem, respondi ainda constrangido.
-Há dias que te observo, sabia potrinho?
-Verdade? Arregalei os olhos surpreso.
-Sim, observei e esperei o melhor momento para me aproximar.
Sinto que você precisa de alguém para confiar, vejo-te sempre tão sozinho... -Eu gosto de ficar sozinho, retruquei.
Não é verdade... ninguém gosta realmente de estar sempre sozinho...
-Pode ser... dei de ombros e caminhei mais um pouco em silencio, mas a observava com o canto dos olhos e assim que ela pousou sobre um girassol para descansar, parei também, a sua espera. Ela sorriu e eu sorri de volta. Victória era assim... ela nunca forçava nada, sabia que eu estava relutante em abrir meu coração para ela, mas que o faria, mais cedo ou mais tarde. E foi assim, que nossa história começou. Infelizmente eu não sabia que esta seria breve. Nem podia imaginar que ela marcaria minha vida para sempre... ou que nos anos vindouros, eu já maduro, buscaria conforto em sua lembrança. Que sorriria sozinho recordando o jeito como ela dava piruetas no ar, e choraria muitas, muitas vezes, com saudade da sua doce voz. Eu não sabia que o destino me reservaria uma vida longa e feliz, mas que em nenhum desses dias eu deixaria de nela pensar, e que em meu coração ficaria faltando sempre um pedaço... Não, eu nada sabia das coisas da vida...
Não sei explicar, mas era como se houvesse em mim um imenso e doloroso vazio que foi sendo preenchido aos poucos por ela.
Eu era como terra seca que ansiava por chuva, eu era silencio que queria gritar... Nada tínhamos em comum. Para ser franco, até hoje não sei bem o que ela viu em mim, ou porque decidiu partilhar suas histórias comigo, mas sempre lhe serei grato. Entre nós havia uma sintonia tão plena que nunca combinamos encontros e horários. Eu simplesmente “sentia” quando ela estava por perto e corria alegremente ao seu encontro. Ela me falava sobre as coisas lindas que havia visto, os lugares que visitara, descrevia-me o perfume das flores nativas, o sabor das frutas, o borbulhar das águas dos rios, e a imensidão do mar azul; Tudo isso para mim, que jamais cruzara os portões da fazenda, tudo isso, era um conceito muito vago, mas de tanto ouvi-la falar sobre essas coisas, eu formava imagens em minha mente e era como se eu as tivesse vivido. Eu quase podia sentir a brisa do mar que jamais vi... sentir a areia sob minhas patas e o cheiro das flores que ela mais amava...
Cada noite eu repassava mentalmente nossas conversas e adormecia feliz.
Uma das coisas que eu mais gostava era quando passeávamos no sol da manhã e ela voava ao meu redor, às vezes pousava em minhas costas, isso era muito gostoso, fazia-me cócegas e eu ria feliz... Que eu me lembre, nunca havia sido feliz antes...
Nunca ninguém havia se importado tanto comigo, nem me dado tanta atenção. Nunca ninguém havia respondido minhas perguntas tolas sem rir da minha ingenuidade, nem me feito sentir tão especial.
Eu já não era “Tito, o potrinho solitário”.
Eu era “tito, o amigo da Victória”, a mais bela e mais sábia das borboletas.
Glori (era assim que eu a chamava) ensinou-me muito... Eu era um potrinho completamente diferente antes dela. Eu era a timidez em pessoa. Arisco e desconfiado, fechado num mundo só meu. Confesso que era também um pouco ressentido com a vida pelo fato de jamais ter convivido com meus pais e por ter uma tremenda dificuldade de me expressar. Para me preservar, inconscientemente adotei uma pose de arrogante e indiferente. Eu fingia que não precisava de ninguém, mas como sofria!
Ela ensinou-me que nem tudo é como queremos e precisamos ser mais fortes que as adversidades quando lhe falei de minhas dores. Eu era rebelde e um pouco mal humorado e insinuei que “era fácil para ela falar”, pois com certeza já nascera bela, autoconfiante e feliz.
Ela apenas balançou a cabeça e disse-me que só falaria disso uma única vez, por isso que eu abrisse bem meus ouvidos (glori detestava lamúrias...). Disse-me que ao contrário de mim, tivera pais sim, mas eles a maltratavam, a diminuíam com palavras e costumavam lhe bater com freqüência... Contou-me também que quando era uma borboletinha mal saída do casulo foi acometida de uma grave doença em uma das asas e que se eu observasse com atenção, notaria que seu vôo não era perfeito.
Disse-me que nada em sua vida viera de graça. A sabedoria, ela buscara. O conhecimento, ela adquirira. A alegria estampada em seu rosto era resultado de sua paz interior e de sua capacidade de perdoar, inclusive a si própria.
Até mesmo a beleza de suas asas era resultado de suas longas viagens, um pouco do colorido de cada flor visitada ficara impresso para sempre nela, assim como ela deixara um pouco de si em cada uma delas...
Nunca mais tocamos no assunto. Glori me fez sentir um potrinho ingrato e cheio de auto piedade nesse dia, como se coisas ruins ou tristes acontecessem apenas comigo. Eu precisava crescer... Mais uma vez agradeci a Deus por ter uma amiga como ela. Um dia, glori falou-me sobre a importância de eu me aproximar dos outros potrinhos, de inicio recusei-me. Aleguei que eles não gostavam de mim.
Então ela disse-me para que eu fosse ao encontro deles, mas “desarmado”, sem medo, sem fingir para agradá-los, mas sendo “apenas eu mesmo”, que eu tinha tudo para ser amado.
Mas francamente, eu não desejava mais isso. Eu tinha glori e isso me bastava, mais que isso, ela era o meu mundo, mas eu não ousaria dizer-lhe... Glori era muito livre e independente. Ser “o mundo de alguém” com certeza não lhe agradaria, por isso eu me calava. Embora jamais tivesse sido tão feliz, passei a sentir algo que nunca sentira antes, uma inquietude, um mal estar quase físico quando ela ausentou-se por alguns dias. A impressão que eu tinha era de que ela me havia aberto uma porta por onde, a principio timidamente, depois avidamente, eu entrara. Ela era meu guia naquele mundo de maravilhas e novidades, repleto de cheiros e sabores, de sensações e sentimentos. Sem ela, a porta fechava-se, acaba-se a magia, as páginas do livro da minha vida ficavam em branco...
Sem ela por perto, eu caminhava ao sol, mas este não me aquecia e eu sentia muito, muito frio... Deitava-me, mas o sono não vinha... Muitas noites tudo que se ouvia era o barulho monótono das minhas lágrimas caindo na palha macia...
Foi então, que sem querer, glori ensinou-me o significado de uma das mais belas e tristes palavras: Saudade...
Despertei de um sono agitado e corri para cerca. Eu sabia! Lá estava ela!
Glori! glori! glori! Eu gritava e saltava, pulava e rodopiava.
-Calma potrinho maluco! Ela riu-se e pela primeira vez deu-me um beijo com cheiro de flor, fiquei radiante.
Queria saber todos os detalhes, por onde andara, por que demorara, atropelava as palavras numa ansiedade só.
Ela explicou-me que em agosto sempre viajava, e que eu não devia ficar tão ansioso. Não era bom, nem saudável ser tão dependente. Amar alguém é deixá-lo livre. Depender é carência e pode sufocar... Não basta aceitar o amor, é preciso crer nele. Disse-me que eu devia aprender a confiar nela. Um dia ela me prometera que sempre estaria comigo, e na época eu não imaginei que assim seria.
Que presença física não é absolutamente nada comparada à presença em nossa alma, guardada num lugar especial, de onde jamais alguém poderá tirar... Até hoje eu a sinto no ar que respiro, no perfume das flores que ela amava, sinto-a, sobretudo, quando corro veloz e livremente, porque ninguém nessa vida amou mais a liberdade que ela... Enquanto ela me contava as novidades, eu ouvia extasiado todas as histórias, tentando absorver o máximo possível de detalhes. Glori havia viajado para bem longe. Assistira seres humanos em seus carros, competindo em corridas malucas. Até num balão azul e branco ela havia voado! Ela é tão eclética, pensei. Gostava de apreciar a beleza de uma noite enluarada, de ouvir os acordes de uma canção, de livros e poemas.
Mas também amava a adrenalina. Era movida por novidades, desafios e descobertas. Glori era uma alma livre e indomada, e parte de seu encanto residia exatamente nisso.
Eu gostaria de ser assim. De ousar mais, atrever-me mais. Mas meu mundo interior tinha outro ritmo, e ela como ninguém, sabia respeitar minha personalidade. O mais importante é que ela havia voltado para mim, e num impulso de felicidade eu disse baixinho: “Eu te amo glori”...
Ela olhou-me daquela maneira terna que só ela tinha e respondeu:
- “Eu sei”.
Fiquei meio decepcionado e arrependido. Esperava uma resposta mais efusiva. Aleguei ter algo para fazer e despedi-me um pouquinho emburrado. Mal dei uns passos e ela gritou: “Amo-te também, tolinho!” e riu gostoso. Glori era assim, nunca óbvia, sempre surpreendente. E me amava! Dissera com todas as letras! “Amo-te”
Ah, como eu era feliz...
Um dia enquanto conversávamos, uns potrinhos aproximaram-se e convidaram-me para uma corrida. Eu relutei. Temia “fazer feio” perante glori. Ela olhou-me no fundo dos olhos e disse: _ “Vá! Você consegue!”.
Eu me enchi de coragem e dei tudo de mim, chegando em primeiro lugar!
Os potrinhos cumprimentaram-me alegremente.
Ela disse: Boa essa sensação não é mesmo?
Qual? Perguntei, cheio de euforia da vitória.
-De vencer. Mas é muito importante saber perder. Nunca esqueça isso.
É preciso maturidade e sabedoria para saber perder, pois na vida ganhamos, mas também perdemos muitas coisas.
Não sei por que, mas aquela conversa sobre perdas me deu um aperto no estomago e eu logo mudei de assunto. Eu não estava preparado nem disposto a perder nada, especialmente ela... Não imaginava minha vida sem sua presença. Ela era meu primeiro pensamento do dia, assim que eu abria os olhos e o último a noite, quando os fechava... Na verdade, até hoje ela continua sendo o último pensamento antes de dormir...
Depois daquela primeira corrida, muitas outras vieram. Ganhei, perdi, cheguei em último lugar, novamente ganhei e assim por diante, como na “corrida da vida”. Eu me tornara um potrinho sociável e até bem popular. Fizera amigos e ganhara auto-estima e confiança. Tudo porque um dia, ela acreditara em mim. Mas a companhia mais constante e desejada era a de glori, claro. Passávamos os dias juntos, riamos muito e nos divertíamos demais. Desde aquele dia em que ela voltara da viagem a palavra “amor” nunca mais foi dita por nenhum dos dois. Não era preciso.
Eu via o amor estampado em seus olhos, via o meu amor por ela refletido no espelho das águas do riacho que cortava a fazenda. Eu nunca vira meus olhos tão brilhantes e cheios de vida.
Como é doce amar e ser amado!
Eu era tão feliz, que tinha medo de assustá-la com a imensidão do que sentia e perde-la para sempre, por isso me calava. Apenas as batidas do meu coração repetiam: “Amo-te... amo-te... amo-te...”.
Glori me ensinou muitas coisas, e bem que tentou preparar-me para o que estava por vir, mas eu me fiz de cego e surdo. Estava aprendendo com ela a viver o momento, o aqui e agora. Não queria pensar em nada, muito menos em futuro. Mas um dia, ele chegou...
Esperei por ela a manhã inteira e nada...
A tarde caiu, melancólica e triste... anoiteceu...
Tentei recapitular nossa conversa da noite anterior, buscar um detalhe, uma pista... mas nada...
Quando o cansaço venceu-me, já alta madrugada, voltei ao estábulo e acabei adormecendo.
No momento eu não prestara muita atenção, mas ela não despediu-se de mim com o costumeiro “boa noite”. Disse: “Faça-me um favor: Seja feliz”.
E assim os dias foram passando... Em desespero, eu oscilava entre a esperança, cada dia mais frágil e a certeza de que ela jamais voltaria.
Nada mais me alegrava nada mais me motivava... eu a queria perto de mim com todas as minhas forças... ela era o meu primeiro amor, minha melhor amiga, fora por ela que eu havia mudado, havia ousado viver, viver plenamente, sem reservas, eu havia lhe entregado o meu coração machucado e ela o devolvera curado...
Como ela podia abandonar-me desse jeito?
Um dia uma sabiá chamada capitu, veio conversar comigo.
Pelo seu olhar triste, eu senti que algo estava errado...
-É sobre a glori, disse ela.
Meu coração disparou, pensei em fugir, eu não queria saber de nada!
Por que ela não me deixava em paz? Queria tirar-me até a esperança?
-Você precisa ser forte. Glori se foi para sempre... ela morreu...
A dor que senti foi indescritível... grossas lágrimas rolaram por meu rosto, nenhuma palavra saia da minha boca... um pouco (ou um muito) de mim também morreu naquele momento...
-tito, ouça-me, por favor...
Eu arregalei bem os olhos, tentando respirar...
Glori já estava doente quando te conheceu... conhecer você foi o que a manteve viva por todo esse tempo... Ela sabia que partiria, mas antes precisava ensinar-te algumas coisas sobre a vida, era como uma “missão”, e está cumprida.
Capitu saiu, deixou-me sozinho com minha dor imensurável.
Por dias e noites eu pranteei minha perda irreparável, a saudade doía em meu peito sem tréguas... mas aos poucos fui voltando a viver...
Lembrava dela, de suas lições, do quanto amara a vida, como era alegre!
E por ela, me fiz forte, continuei minha jornada...
tentei seguir seu conselho e ser feliz.
Anos passaram. Tornei-me um garanhão decidido e muito respeitado, constitui família, já conheci os filhos dos meus filhos, mas nunca, jamais, em tempo algum, esqueci a beleza do que vivi junto a ela.
Foram os mais doces, os mais ternos e inesquecíveis momentos da minha vida... Eu sei que quando a luz dos meus olhos se apagar será o reflexo de suas asas que brilhará pela última vez em minha íris...
Quem sabe, então,
nos reencontremos,
num espaço de tempo,
chamado...
eternidade...
https://www.youtube.com/watch?v=j1yJD72iO-o