Meus pais de coração
Jorge Linhaça
 
 
Sou um homem a quem Deus permitiu a sorte de ter pais imperfeitos mas que me amaram, cada qual do seu jeito, como se carne e sangue deles eu fosse.
Não sou , por certo, o único nessas condições, mas o amor e gratidão que sinto por eles nunca há de se extinguir.
Brigas? Discussões? Claro que haviam, inda mais tendo eu e meu pai em comum o temperamento explosivo...mas isso em nada diminuiu nosso amor.
Meus pais trabalhavam fora ao longo de minha infância e era minha avó materna quem tinha a responsabilidade de cuidar de mim e da casa.
Nunca tivemos posses dignas de nota, na verdade sempre moramos de aluguel durante minha infância e adolescência. Minha vó era analfabeta e meu pai e mãe pouco puderam frequentar os bancos escolares, mas desde muito cedo estimularam em mim o desejo da leitura...não havia coleção que se lançasse nas bancas de jornais que eles não fizessem esforço para que viessem parar às minhas mãos.
Minha mãe passou muito tempo trabalhando como arrumadeira em hotéis, até que um primeiro infarto a tirou da atividade.Foram anos na "caixa" até que finalmente a aposentassem com aquela miséria típica concedida aos brasileiros que se aposentam.
Meu pai trabalhou como vigia noturno em uma fábrica de TVs ( Elmer), para onde me levava vez por outra para poder partilhar um tempo comigo.
Depois passou anos como açougueiro e lá ia eu "ajudá-lo" depois das aulas, para voltarmos juntos na sua bicicleta.
Tentou ter seu próprio açougue por uns tempos, mas a sua honestidade e a falta de escrúpulos do fornecedor de carne impediram que o negócio fosse adiante.
O mesmo já havia acontecido quando eu ainda nem existia, quando tiveram uma barrca de tomates nas feiras livres. Como não tinham caminhão ficavam nas mãos de um carreto o que, aliado à maneira de ser deles de não explorar o povo impediu que o negócio prosperasse, senão quem sabe hoje não estaria eu numa feira livre de São Paulo gritando  Olha o tomate fresquinho...aproveita que tá barato...moça bonita não paga...mas também não leva...ou coisa parecida...
Fui criado no catolicismo, passei pela umbanda e por fim tornei-me mórmon...apesar de meus pais estranharem essa opção jamais procuraram impedir a minha jornada religiosa, nem mesmo quando os deixei por dois anos para tornar-me missionário.
Nesse interim eles filiaram-se à igreja e depois acabaram se afastando por anos.
Casei-me, tive filhos, descasei-me...casei-me de novo...mais filhos...novo divórcio e eles sempre ali , concordando ou não comigo a me apoiarem nos momentos mais difíceis.
Ambos conheceram os cinco netos e netas, para eles motivo de orgulho e amor...minha mãe partiu antes que minha filha mais velha se casasse, mas meu velho pai ainda conheceu as bisnetas...
Meu pai muito mudou ao longo dos últimos anos, tornou-se um pouco mais tolerante e menos casmurro...quem sabe eu siga o mesmo caminho...ainda tenho cá meus arroubos de ira e revolta.
Não sei o que seria de mim sem esses pais maravilhosos com que Deus me brindou quando minha mãe biológica entregou-me para adoção por motivos que desconheço mas que deveriam lhe parecer importantes e insolúveis na época.
Reza a lenda que eu teria ao menos mais um irmão mais velho dessa mesma mãe.
Jamais soube nada sobre eles ou a adoção até o falecimento de minha mãe que tinha medo de que ao saber que eu era adotado fosse embora ou fizesse algo desse tipo.
Hoje meus  pais de coração já partiram desta vida mas deixaram-me uma grande herança...o caráter que foram moldando ao longo dos anos com ações e exemplos.
Ouro nem prata tinham, mas o que tinham isso me deram...a capacidade de amar, de sentir, de viver honestamente ainda que a " deusa da fortuna" nunca tenha nos sorrido.
Mas para mim, tivesse eu toda a riqueza que pode um homem almejar, em termos materias e não tivesse recebido tal amor, de nada adaiantaria, talvez estivesse como muitos aprisionado nas futilidades de nosso tempo.
Hoje resolvi escrever esta carta...pois o amor calou fundo em meu peito e a saudade tomou-me os olhos com águas salinas.
 
Salvador, 11 de janeiro de 2012