Atavismo

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Hoje veio me visitar uma saudade essencialmente atávica. Um atavismo misturado de ascendência e descendência, tudo, entretanto, dentro da mesma percepção: a morte.

O cronologismo é o que menor importância possui. Afinal, a dor que sinto e a saudade dos que me eram caros e se foram não me permitem o luxo de cotejar essas ausências no tempo – que diferença faz quem foi primeiro e em que circunstâncias isso ocorreu.? Todos se foram e a lacuna deixada por cada um, ao se somarem agora, provocam-me teimosas lágrimas, ‘inchando’ minhas pálpebras que de tão pesadas descerram uma torrente de salobras lágrimas. A saudade doída e doida que a morte nos faz sentir não pode ser expressão de medo nem de credulidade ou incredulidade que se contrapõe aos fatos. Morremos e pronto! Morremos e pronto?

Tão paradoxal quanto nos parecem ser a vida e a morte, falarei dessas ausências, pois o óbvio e o simples devem ser revelados, ditos, embora neste momento dentro de mim essas circunstâncias em nada alterem o que sinto.

Meu avô descansou para toda a eternidade aos 100 anos, dormindo. Foi um homem de 3 dígitos! Numa visão binária da combinação entre ‘0’ e ‘1’ daria 4, exatamente o número de gerações com as quais meu centenário avô teve a honra de conviver, vendo crescer filhos, netos, bisnetos e tataranetos que o amavam.

Quando o ciclo da vida se completa com os naturais percalços que merecemos viver, em menor ou maior intensidade, a gente até se conforta quando o juízo final nos bate à porta. Para os humanos atuais, viver 100 anos parece uma honrosa dádiva. Se usarmos o poder da relatividade e nos abraçarmos aos escritos sagrados, independentemente do sistema de base de numeração utilizado (decimal, binário, sexagesimal), sentimos um pouquinho de um dos pecados capitais e uma saudável inveja nos açoita o coração desejoso de viver mais! Que tal algo em torno de 900 anos? Quem não gostaria, mas...

Vicente, meu vozão, era um conquistador, um apaixonado por mulheres, e fez valer essa predileção por toda a vida, mesmo depois que a força do tempo descerrou a pujança que o viço da jovialidade nos assevera. Ele era todo elogios para qualquer mocinha que se aproximasse – ainda bem que o velho centenário não viveu a doentia época onde um olhar ingênuo pode nos levar à cadeia. Era ver uma mocinha e soltar uma poesia improvisada, recheada de intenções, mas respeitosa – a ordinalidade das intenções, se de primeira, segunda ou outra ordem qualquer, ficava a cargo da musa, muitas vezes seduzida pelo poder do verbo. Depois, era só usar o tempo, esse intangível elemento de condução da humanidade e se esconder nas amarras corpóreas, entre um e outro falar que os amantes se proporcionam mutuamente.

Os versos renderam ao meu avô 18 nascimentos oficiais. O velho, entretanto, como excelente comerciante, teve a sagacidade de abrir várias filiais, muitas não reveladas à fonte original da descendência. Novamente, foi o tempo quem cuidou de clarear as peripécias do poeta errante e amante da vida, do verbo e da carne feminina.

O poeta é aquele homem que possui o dom de arregimentar a concretude do corpo feminino, inventando, alimentando ou criando ilusões dentro do vazio transcendente da imaterialidade do verso. Ele transforma números em numerais e reveste a capacidade do toque d’uma abstração fixa no tempo e repleta de curiosidades e buscas. Isso meu avô fez com maestria e merece ser chamado de poeta! Como ele mesmo dizia, ‘o homem pode ter a palavra bonita, dominar a escrita e ter fama de orador, mas se não tiver a veia poeta, não faz obra completa, seja vigário ou doutor’.

Não sei muito bem como funciona a química dos decompositores, mas meu avô hoje, depois de muitos anos post mortem, já deve ter feito a felicidade de muitas bactérias fêmeas – será que no mundo microscópico os poetas também têm lugar privilegiado entre as mulheres?

Outra ausência que em muito e há muito me comove é a do meu rebento. O guerreiro, dos setenta e quatro dias de vida, hospedou-se numa UTI de um hospital por setenta e três ininterruptos dias, do segundo ao derradeiro. Foram dias de luta e de superações que deixaram marcas indeléveis – as imperfeições físicas até que foram compreendidas como desígnio de Deus, mas as incorreções hospitalares, com sucessivas artimanhas e falcatruas, essas jamais serão aceitas, apesar de entendidas muito bem sob a ótica do vil capitalismo que forma falsos profissionais, escondidos atrás de roupas brancas que encobrem o que de mais asqueroso existe no ser humano: o desrespeito à vida por quem deveria dela cuidar e cuidar muito bem!

Em se tratando dele, do meu filho, tudo ficou no campo das expectativas. Nunca tivemos o prazer de trocar confidências de pai para filho. Não nos foi dada a oportunidade de brincar, de zoar, de falar sobre as mulheres tão bem compreendidas e amadas pelo meu avô. Roubaram de nós esses momentos; roubaram de mim a felicidade plena de pai, a plenitude da descendência – tenho filhas mulheres, duas, mas para o pai é no filho que se processa toda a fluidez da transcendência do caçador. Que me chamem de machista, de homem ultrapassado. Chamem-me do que quiserem, que importa! Queria, sim, ensinar para o meu filho (homem) todos os segredos do bom caçador! É assim que acontece com as águias, com os leões. E no campo das conquistas, onde o homem precisa cotejar, ainda faz diferença saber caçar! Como pai, entretanto, tudo o que posso dizer é: que venham os caçadores!

A terceira e mais recente ausência é a do meu pai. Guerreiro desde sempre, desligou-se dos laços maternos aos 13 anos de idade e aventurou viver na capital cearense, sem eira nem beira! Como ele mesmo dizia: ‘Sempre fui pequeno, mas sabia que era mais inteligente que os brutamontes da minha cidade. E não queria morrer ali, esperando chover a cada novo ano, sem perspectivas’. E você não morreu lá, papai! Você venceu! Conseguiu cuidar do restante da família deixada no interior (13 irmãos e mãe) e sustentar sua prole que não é grande, mas digna. Também viu nascerem filhos, netos e uma bisneta – talvez, por não ter sido um homem de três dígitos, não tenha presenciado o nascimento de nenhum bisneto.

É, meu pai. Quanta teimosia! Quantos impropérios ditos impensadamente. Depois da recalcitrância, veio a força da enfermidade e, por três longos anos, a revisitação a salas de hemodiálise. Durante a fase final de convivência com o meu pai, dois momentos, duas falas dele me marcaram e, sempre que tento me reportar aos fatos, elas me surgem fortes. Num desses momentos, meu pai me disse quando o peguei para levá-lo à hemodiálise: ‘Meu filho, se existe inferno, ele fica naquelas salas!’; o segundo, esse mais inesperado e comovente para mim, foi quando ao encontrar o meu pai deitado, muito esquivo, gemendo baixinho, para não incomodar (ele odiava ser dependente), comentei:

– Está cansado, papai? Quer desistir?

E ele, chorando, respondeu:

– Não, meu filho. Queria era ficar bom! Essa doença está demorando muito.

As lágrimas ficaram pesadas demais e as comportas dos meus olhos não as puderam segurar. Tentei esconder todo o meu sofrimento e ele percebeu que eu chorava. Entretanto, mesmo sem nada falar, meu pai, apesar de toda dor e sofrimento, ainda teve o cuidado e o desvelo de me acariciar o rosto como a me revelar que era desígnio de Deus toda aquela privação. Eu o abracei fortemente e choramos os dois.

Dizem que homem não chora. Dizem que homem não diz que ama. Dizem que homem é forte. Disseram que o nordestino também é um forte. Sou nordestino, homem, amo e choro. Chorei e choro essas três ausências. Choro a impossibilidade de novo abraço. E, na dor que sinto, busco forças para irrigar meu coração com as lágrimas que me banham o corpo – elas descem e se renovam ao encontrarem o calor da minha alma; desse contato, evaporam e, durante a ascensão, penetram minha essência pelas narinas, renovando o ciclo da existência, entre mortes e renascimentos.

Meu avô, poeta – até breve!

Meu filho, herói – até breve!

Meu pai, guerreiro – até breve!

Nijair Araújo Pinto

Crato-CE, 12 de abril de 2010

02h45min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 12/04/2010
Reeditado em 01/07/2022
Código do texto: T2191603
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