HERANÇAS E TATUAGENS

(para a mulher que me concedeu o hálito de viver)

Pus na fístula social que me engole luto bravamente. Da mesma forma que meus pais já o fizeram. Com garra. Sem medo, sempre acreditando no Homem, no amigo que fica no Tempo. De calças curtas, da bola de meia, do velho Pepino, o rio da infância onde eu pegava caranguejos.

Dos gritos fortes de ti, pai, lembrando a hora do estudo: o grito da compostura, chamado à ordem, à sociabilidade, quando havia desentendimentos durante a pelada no campinho de futebol de defronte, onde tudo se dava, desde pontapés, empurrões, jogadas viris, beijos e abraços na hora do gol, e a discussão que se seguia, quando a bola derrubava a lata de azeite, goleiras do mundo da infância, de onde nascemos e ficamos, como se a goleira tivesse a forma de um grande coração ou uma enorme raquete que nos empurrasse para a frente, para a vida, alhures!

Onde meus amigos? Onde a explosão do gol, a troca de socos, meus moços pais vendo os filhos de longe, sentados na frente da casa, os pequenos brincando na areia. Castelos, minas, o carrascal de carrapichos: esconderijos

onde guardávamos os ferozes instrumentos de guerra.

Ah, a guerra! Nunca se viu morrer um soldado da infância!

Feridos, sim: a pedra na testa, o supercílio sangrando, o abraço, a descompostura, um temor sem medo que ficava soando como um sino que anuncia um casamento!

E vinha o castigo: olhar pela fresta da janela os outros manos brincando, até que um deles brigava e surgia o álibi do socorro: – Estavam se matando!

E a gente ficava ali, transitando no pátio da infância, esperando e rogando que o bigode do velho não estivesse torcido e se pudesse sair pelos portões do castigo, que davam para o mundo dos folguedos, do convívio com outros meninos e meninas.

Portões que para os mais velhos se abriam ao imaginário do antes e do depois.

E minha mãe sentada, cantarolava ao final da tarde uma canção dolente, amamentando o pequenino mano, enquanto no seu ventre cheio de amor novamente esperneava o sangue da vida.

E na tarde finda, os balões de junho corriam no céu como pirilampos de verão.

- Publicado originalmente em formato de poema, no livreto O EU APRISIONADO. Porto Alegre: EditorArt – RB Editor, 1986, 28 p.

http://www.recantodasletras.com.br/mensagensdeamor/121137