MEMÓRIAS DE UMA VIDA

Era uma sexta feira.

Acordei numa cama de hotel, fazia um frio terrível e eu sentia meu corpo gelado, abri os olhos com uma ressaca insuportável.

Na noite anterior havia bebido muito whisk de péssima qualidade na casa do Aparecido.

Naquela época passava pelo o pior momento da minha vida, tinha me separado da família que era tudo para mim, eu só pensava em ter minha vida de volta, estar com minha mulher e meus filhos na minha casa.

Psicologicamente estava arrasado, a minha vida não fazia mais sentido, dinheiro, bens materiais, pra que? Não havia mais meus filhos e minha mulher para usufruir, era apenas eu completamente perdido, vivendo grande solidão distante de todos que eu amava. Nada mais me interessava ou fazia sentido. Havia cometido o maior erro da minha vida em ter me afastado da minha família.

Aquela manhã prenunciava um dia difícil, era dia do pagamento da peãozada que trabalhava no mato em Campos do Jordão, o cliente não havia quitado as faturas no dia anterior como combinado e estava sem previsão, talvez somente no meio da próxima semana.

Com documentos de propriedade nas mãos dos caminhões e tratores como garantia para um provável empréstimo, era minha função naquela manhã visitar todos os bancos e financeiras da cidade para levantar os recursos para o pagamento da folha que teria que ser realizado naquele dia impreterivelmente, se não conseguisse teríamos sérios problemas com o pessoal.

Era o inicio da década de 1990, naquela época os bancos abriam mais cedo, não lembro se era as 8 ou 9 horas da manhã.

Bem cedo me sentindo muito mal pela ressaca estava nas ruas atrás do dinheiro.

Foi assim a manhã inteira, de banco em banco, de financeira em financeira e nada.

Ao meio dia fui até o escritório avisar que até àquela hora não havia conseguido o empréstimo, quando recebi a noticia que o Aparecido sofrera um enfarto e estava internado no hospital.

Era o que faltava.

Passando muito mal ainda com ressaca, deprimido, vivendo uma situação que jamais imaginei passar, numa cidade estranha, longe da minha casa e da minha família e do meu trabalho normal.

Voltei ao centro da cidade atrás do dinheiro.

Choveu o dia inteiro, me sentia encharcado dos pés a cabeça e com muito frio, naquela semana não trouxera de São Paulo agasalho suficiente para o frio que fazia em São José dos Campos.

Depois de passar no período da tarde pelos bancos e financeiras que restavam na cidade e não conseguir nada, fui direto para a casa do Aparecido para saber como ele estava de saúde, não sabia em que hospital estava internado.

Recebi a noticia que ele estava bem, mas não podia receber visitas, e que havia pedido se eu poderia ir com o filho dele até o acampamento em Campos do Jordão avisar o pessoal da situação que ele estava de saúde, e que não haveria o pagamento naquela semana como ele havia combinado, lembrando que na semana anterior também não havia acertado com o pessoal.

O filho era um garoto tinha 18 anos, percebi que a bomba estouraria na minha mão.

Entre os funcionários do mato tinha muitos bandidos fugitivos principalmente da região norte e nordeste do Brasil. Ficavam praticamente escondidos na floresta trabalhando serrando madeira e ganhando algum dinheiro para enviar para suas famílias, não queriam ser registrados de jeito nenhum, não podiam aparecer.

Era com esse pessoal que eu teria que comunicar que infelizmente mais uma semana não haveria pagamento.

Eu e o Reginaldo, saímos de caminhonete mais ou menos as 19 horas rumo a Campos do Jordão. Na saída a mulher do Aparecido me deu um revolver calibre 38 carregado para nossa segurança caso alguma coisa desse errado. Peguei a arma com muita preocupação.

Foi uma viagem tensa, estava vivendo uma situação que jamais imaginei que um dia viveria na minha vida.

Eu pensava: Meu Deus o que aconteceu comigo, como vim parar nesse lugar e nessa situação?

Estava com medo do que teria que enfrentar no acampamento e me perguntava o que faria se houvesse necessidade de usar a arma. Já havia atirado muitas vezes orientado por um tio colecionador de armas, mas havia muito tempo.

Quando começamos a subir a serra de Campos de Jordão o frio era insuportável, lembro que havia um plástico amarelo dobrado atrás do banco do passageiro, eu peguei para me cobrir eu estava tremendo e as pernas estavam travando, o que dificultava eu dirigir a caminhonete.

O acampamento ficava há 10 quilômetros do centro de Campos entrando pelo Horto Florestal na serra da Mantiqueira.

A estrada dentro do Horto era de terra e estava toda alagada com a chuva, a caminhonete derrapava a todo instante ameaçando atolar em que cada buraco camuflado pela escuridão.

Essa estrada era utilizada pelos pesados caminhões trucados que transportavam as toras de madeira do local da extração para cidade de Pindamonhangaba onde se encontrava a serraria, e em função do peso, na estrada de terra molhada, deixavam sulcos no meio no centro tornando quase impossível para os carros leves rodarem.

Quanto mais nos aproximavam do acampamento mais minha tensão aumentava.

Foi uma reunião pesadíssima, o ambiente estava extremante tenso e perigoso, em vários momentos achei que a situação fosse sair do controle, naquela noite fui abençoado por Deus que me deu muita coragem para enfrentar a situação, não demonstrei para peãozada em nenhum momento medo da situação que me encontrava, eu tive também muita presença de espirito na minha fala eu mesmo me surpreendi com minha coragem em função das circunstâncias.

Durou quase três horas a reunião e praticamente eu falei na maioria do tempo para mais de 80 peões, será necessário um capitulo exclusivo para relatar tudo o que aconteceu.

Era quase meia noite quando saímos do acampamento são e salvos. Um frio de zero grau, chuva fina, fome, e o corpo gelado, sentia um frio tão intenso como nunca havia sentido na vida. Dentro da caminhonete tremia muito, não sei se só do frio ou de medo com efeito retardado.

Chegamos em São José a 1:30 da madrugada, estava desesperado para voltar para São Paulo como fazia todas as sextas feiras, só pensava em estar na segurança e no conforto da minha casa.

Lembro que a mulher do Aparecido queria que eu jantasse, não quis, aceitei dois lanches de queijo que fui comendo na viagem, estava com tanta fome que foi melhor sanduiche de queijo que comi na minha vida;

Eu tinha uma Brasília, o limpador do para brisa estava com defeito, como chovia muito não dava conta de limpar direito o que dificultava minha visão da estrada.

A chuva não diminuía, como estava com a visão prejudicada não passava dos 80 e 90 km por hora. Depois de Jacareí, uns 20 km a frente, tem uma reta longa, passou por mim uma Kombi, e logo depois um ônibus da viação Pássaro Marrom, que fazia na época a linha de São Paulo as cidades do Vale do Paraíba, passou por mim em uma velocidade muito além da indicada para a estrada naquelas condições.

Naquela época a Via Dutra não era privatizada, as condições da estrada eram péssimas, era conhecida como a estrada da morte.

Apesar da importância a via Dutra tem um projeto de estrada muito antigo, tem uma reta e no final uma subida e quando o motorista esta quase no topo dessa subida não consegue ver a estrada logo a sua frente que inicia uma descida.

E foi isso que aconteceu, passou a Kombi, o ônibus em alta velocidade, e quando iniciou a descida na ponta da reta o transito estava parado motivado por um acidente mais a frente, a Kombi conseguiu frear e parar atrás de uma carreta que era o ultimo veículo da fila, e o ônibus que havia passado por mim em alta velocidade não conseguiu frear empurrando a Kombi para baixo da carroceria da carreta.

Eu cheguei logo a seguir, e com medo de ser o ultimo veiculo da fila e alguém não conseguir frear e me atingir, sai pelo acostamento onde tinha uma estradinha lateral a pista que subia a um antigo posto de gasolina desativado, fiquei parado no barranco no alto ao lado da pista na altura do ônibus acidentado.

Com a batida os dois ocupantes da Kombi morreram no ato decapitados, quando foram empurrados contra a carroceria da carreta, e o motorista do ônibus com a batida na Kombi ficou preso nas ferragens.

Conseguiram abrir a porta do ônibus por onde retiraram os passageiros feridos deixando seus corpos estirados no pé do barranco onde eu estava parado acima.

Quando sai do carro observei alguns veículos fazendo o mesmo que eu para saírem da pista estacionando atrás do meu carro.

Pararam os dois lados da pista, naquela época havia os chamados anjos do asfalto equipe de paramédicos que atendiam acidentes na Dutra.

Demoraram mais de uma hora para conseguirem chegar ao local do acidente, estava tudo parado. Fiquei esse tempo todo ouvindo o motorista preso nas ferragens gritando de dor pedindo para que as pessoas o retirassem daquela situação, não suportava mais a dor, eu ouvia também os gemidos dos outros acidentados colocados deitados no pé do barranco.

Depois de tudo que eu havia passado durante o dia não entendia por que Deus estava fazendo passar por tudo aquilo.

Ouvindo os gritos de dor do motorista, as pessoas gemendo eu tinha a impressão de estar no inferno. Estava profundamente abalado, voltei para o carro com frio e todo molhado, e sem nenhum controle emocional desatei a chorar desesperadamente, foi a primeira vez que senti em toda a minha existência medo de viver, medo da vida, eu jamais me senti tão sozinho.

Eu só pedia a Deus que tudo aquilo pelo qual estava passando fosse apenas um pesadelo e que a qualquer momento estaria na segurança da minha casa com o amor da minha mulher e dos meus filhos.

Eu sentia um frio insuportável.

Os Anjos do Asfalto chegaram e a chuva aumentou, não sai mais do carro, depois de muito tempo começaram a retirar o ônibus da pista para liberar pelo menos um lado para o trafego, manobrei rapidamente, desci a rampa e entrei na pista da esquerda e bem lentamente comecei a seguir para São Paulo.

Eu sonhava em fechar os olhos e quando abrisse estivesse em frente a garagem da minha casa.

Demorei mais de duas horas de estrada e marginal até chegar em casa.

Quando entrei no meu bairro custei acreditar que estava chegando em casa.

Quando parei frente a garagem o farol do meu carro iluminou pelo portão de ferro vazado e havia outro veiculo estacionado. Era o seu carro, confesso que durante todo o dia não me lembrei de uma vez se quer que você estava morando na minha casa.

A sua importância na minha vida era muito pequena naquela época.

A casa estava escura, quando entrei senti muito frio no seu interior, completamente diferente quando vivia ali com minha família.

O corredor que conduzia aos quartos mantinha a mesma lâmpada com fraca iluminação ainda do tempo que meus filhos moravam na casa, era mantida a acessa a noite caso alguma criança acordasse assustada ou para ir ao banheiro, e não encontrasse total escuridão.

Abri a porta do meu quarto e você estava dormindo bastante coberta, entrei no close troquei rapidamente de roupa, lembro que vesti um conjunto de moletom cinza, velho, que usava para dormir em noites muito frias como aquela.

Sem fazer barulho e procurando fazer o mínimo de movimento entrei para debaixo das cobertas que estavam aquecidas pelo seu corpo, bem devagar te abracei por trás de conchinha, nesse momento você percebeu minha chegada e sem falar nada se encostou mais seu corpo contra o meu e continuou a dormir.

Depois de tudo que eu passei naquele dia eu estava arrasdo com medo de viver. Deprimido e sentindo profunda solidão, abraçado a você comecei a chorar baixinho para que não percebesse.

A depressão que eu sentia era profunda.

O calor sob as cobertas começou a aquecer meu corpo, parei de chorar, o perfume do seu cabelo e do seu pescoço me davam grande prazer e bem estar. A energia positiva que eu sentia saindo do seu corpo e envolvendo o meu foi me acalmando, fui esquecendo as tristezas e toda angustia que havia passado durante todo o dia. Consegui esquecer um pouco meus filhos e a saudade que eu sentia, todo o sofrimento que eu sentia foi desaparecendo, passei a sentir uma calma, uma paz, um bem estar sublime, e abraçado a você sentido o calor do seu corpo adormeci.

Esse dia foi um divisor de aguas para mim em relação a minha vida com você.

Meus filhos se mudaram de São Paulo, meus pais também se mudaram da cidade, nunca fui muito próximo ao meu irmão que ficara em São Paulo, me sentia completamente sozinho, e nesse dia, naquele exato instante que me recuperava emocionalmente ao seu lado, percebi que eu só tinha você na minha existência.

A partir de então passei a considera-la minha amiga, companheira, confidente, meu amor, estava sempre junto a mim, nesse dia você passou a ser minha única família. Eu só podia contar com você na minha vida

E assim foi por muitos anos, sempre respeitei muito você, e procurei a qualquer custo retribuir o carinho e a atenção que você me dava.

Foram tantos anos juntos, penso que ninguém te conheceu tão profundamente e te entendeu tanto como eu.

Naquela época eu tinha certeza absoluta que você seria minha ultima companheira até nossos últimos dias, e quando chegasse o nosso fim nessa jornada um estaria ao lado do outro cuidando para que não se sentisse sozinho no final.

Você sempre representou mais para mim do que eu para você, essa história mostre o motivo. Durante nosso relacionamento você continuou com sua família ao seu lado, tinha outras pessoas para apoia-la, ao contrario eu só tinha você, e concentrei total dependência da minha vida em você.

Jamais imaginei que meu relacionamento com você terminaria se não fosse pela morte de um dos dois, lembra-se que eu dizia que morreríamos juntos em um acidente aéreo na volta de uma viagem maravilhosa pela Europa? Por incrível que pareça naquela época não imaginava minha vida sem você ao meu lado.

Infelizmente não era esse o destino reservado para nós, e a separação aconteceu em 2004.

Estou convencido depois de varias experiências que não temos comando de nada sobre a nossa vida, nascemos para viver uma grande peça de teatro com o enredo todo escrito, com começo meio e fim determinados.

O tempo que vivi ao seu lado foi maravilhoso, um dos melhores momentos da minha vida, sou eternamente grato a você e a Deus por terem me dado essa oportunidade. Acredite com toda convicção que eu te amei muito.

Guardo essas lembranças na mente e no coração como joias valiosíssimas, afinal situações como essas permitiram valer a pena viver intensamente cada segundo da minha vida.

Duda Menfer
Enviado por Duda Menfer em 25/12/2017
Reeditado em 11/08/2019
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