CANTO REBELADO * A natural transitoriedade

Enquanto o desespero, resignado, jazia nas masmorras,

incapaz de descortinar as auroras boreais,

o poeta castrado chorava:

O meu cantar é tão doído, é um soluço

que embarga a minha voz...

O aprendiz de sábio afirmava,

do cimo da sua ignorância laureada:

--- Sempre houve ricos e pobres...

Os senhores do tempo e do espaço,

por detrás dos mastins

que noite e dia vigiavam, implacáveis,

embruteciam-se em báquicas orgias,

desafiavam fantasias pantagruélicas

e insultavam a decência e a inteligência

em obscenas irracionalidades...

O verbo do feitiço

imolava as presas em aras de sangue,

purificava o rebanho em piras incendiadas,

proclamava a diferença incensada

do poder e da servidão,

garantia a chave miraculosa de um mundo onírico

aos humilhados e ofendidos,

mas só depois da morte...

Sem poetas castrados,

sem aprendizes de sábios,

sem senhores nem mastins,

sem feitiço nem feiticeiros

do insondável mistério do ser e do não-ser,

bastante, a natural transitoriedade

conjugava o verbo existir

sem masmorras,

sem poetas castrados,

sem senhores nem mastins,

sem feitiços nem feiticeiros,

descortinando o devir incendiado

das auroras boreais...

José-Augusto de Carvalho

Viana * Évora * Portugal

José Augusto de Carvalho
Enviado por José Augusto de Carvalho em 13/02/2008
Reeditado em 30/12/2018
Código do texto: T857568
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