Sobre tretas de zap (uma reflexão)

 

 

     Dias atrás, quase como se estivesse comendo pipoca numa sala de cinema, acompanhei mais uma treta num dos inúmeros grupos de WhatsApp nos quais nos metemos todos nesses dias digitais.

     O grupo? Cristãos e filósofos, ou seja, reunião de elementos perfeita para a contenda.

     Quase como sempre, alguém lançou uma ideia, que soou como ataque e, portanto, requerendo defesa. Ao menos assim perceberam aqueles que têm suas ideologias facilmente cutucadas por todo e qualquer ego que ameace aos seus próprios.

     E estava feita a encomenda: quase uma semana de perguntas, respostas, réplicas, tréplicas e todo o restante de múltiplos que não sei nomear nesse caso.

 

***

 

     Deixem-me perguntar: Há algo de novo sob o Sol?

     Vejamos...

     Primeiro, os conflitos de ideias.

     Ora, já Adão e Eva contenderam vergonhosamente sobre o Crime da Maçã. Em seguidinha, Caim e Abel. E, pensando também em termos darwinistas, para a espécie de hominídeos que parece ter devorado seus rivais australopitecos, brigas, briguinhas e brigonas são tão antigas como a humanidade, literalmente.

     Segundo, a escalada.

     Parece que não foi por acaso que fomos comparados a termômetros. Somos seres de egos de mercúrio e o habitual é a explosão do bulbo, não seu arrefecimento.

     Terceiro, intercalando.

     Para os que ainda nutrem o conceito de que o mundo das telinhas trouxe grandes novidades para as relações humanas, lembro bem das discussões na casa da irmã Lívia (nome fictício). Além dos constantes assaltos ao turno do outro, os assuntos permaneciam no alçapão da consciência, só esperando um novo encontro para arrombarem as trancas e mostrarem as garras novamente. A gente adora fofoca. Adora ver gente brigando. Tá com dúvida? Lembre apenas dos romanos e sua sanha por feras devorando cristãos nos coliseus da época. E briga não morre, só adormece! Assim, o fato de os temas intercalarem com outros temas, outras falas e outros comentários, dificultando até achar as pedrinhas de João e Maria, também não representa novidade na contemporaneidade.

     Quarto, os mediadores.

     Aqui, é só pensar na briga entre vizinhos, na polícia chamada para interferir – polícia, a necessária mediadora – ou no ditado ‘Em briga de marido e mulher...’. Recentemente, até o judiciário investe mais na mediação, que já virou até alvo dos que buscam lucrar com cursinhos-falcatrua na internet. Até o professor virou ‘mediador’! Então, nada de novo aqui também.

     Quinto, os expectadores.

     Neste quesito, é suficiente lembrar que até em acidente de rodovia logo se cria um público ávido por sangue – alheio, claro – sendo que as autoescolas até aconselham ocupar esses intrometidos, para que enormes e pesados caminhões não venham a atropelar mais ninguém na arena que se cria ao derredor.

     Mas, eis aqui, sim, algo moderno: os expectadores se multiplicaram.

     Na casa de Lívia, éramos sempre quatro, sete ou dez. Nunca mais. No zap-zap, fácil somos duzentos! E, enfim tenho de reconhecer, essa novidade é perigosa demais para ignorar. As máscaras, mesmo sendo tão antigas quanto as gregas ou quanto a folhagem tapa-sexo de Adão e Eva, permitem, literalmente, ter a coragem de tornar a treta um evento quase mundial. Vemo-nos como gladiadores concorrendo ao ‘joinha’ do mundo. Estufamos nossos peitos e sacamos nossos gládios, pois sangue de verdade, vermelho e vital, esse não escorrerá. As bruxas e bruxos podem ser perseguidos com a tranquilidade da cabeça descansando no travesseiro. Somos corajosos covardes!

     Preciso dar ainda mais uma mão à palmatória: o tempo!

     Em minutos, reunidas as possíveis condições necessárias, um print pode te colocar nas telas de Wall Street.           Se, antes, meses e meses de caríssimos papeis levados de navio, de cavalo ou de mula, selados com o selo do rei, eram necessários para a pergunta chegar, agora, esse tempo – que inclui também a resposta e todo o resto – se encurtou terrivelmente. E é esse tempo quase-quântico que talvez seja o grande responsável pelo amargor das modernas tretas. Não nos damos mais o tempo da análise, o tempo de uma escrita mais refletida, o tempo de uma escrita distante do pensamento, mediada pela história de vida e não só pelo ímpeto das bolhas ideológicas ou de algumas leituras.

     Todos os demais elementos – como o carimbo que damos aos treteiros, a execração pública e a exclusão, os mediadores autorizados e não autorizados etc. – são o corolário óbvio da vida humana. Mudam as pessoas, não as formas. Mudam as ênfases, não os assuntos. Em busca de aprovação ou de marcar nosso lugar no grupo, ao invés de apresentar uma caça mais gorda ao líder tribal, tentamos agora conquistar terreno virtual.

     Tempo e quantidade, porém, seriam argumentos poderosíssimos para apoiar a ideia dos ‘politicamente corretos’, dos que advogam a ‘linguagem não violenta’, daqueles que querem extirpar as tretas – os treteiros, na verdade – dos círculos de amizade, apontando dois dedos ao próprio olho e depois um ao treteiro, mas muito mais ferozmente que Robert de Niro.

     Seriam? Sim, seriam – futuro do pretérito!

     Pois nas reuniões da casa de Lívia, não faltavam acaloradas discussões. Havia uma certa raivinha? Sim, claro. Mas, e este é o ponto que faz equilibrar a balança, havia crescimento, pois o atrito entre arestas ajudava a polir o diamante bruto! E disso sinto muita, mas muita falta. As pautas identitárias e o seu corolário na linguagem fazem os oprimidos – não todos, claro – se esconderem atrás de seus novos direitos. Qualquer palavrinha que cheire a ofensa é logo ameaçada com o mais novo bordão: - Vou te processar!

     E, de processo em processo, além de muitas injustiças jurídicas, do agigantamento da papelada, de muita gente inocente presa, estamos criando um ‘nãometoquismo’ já alardeado por alguns, que o batizaram de ‘mi-mi-mi’.

     Sim, sim, concordo que é preciso lembrar as conquistas: negros, mulheres, comunidade LGBTQIAPN+, nativos, PCDs e outros – e outras – foram e são, sim, perseguidos, torturados, injustiçados, ridicularizados, mortos. Portanto, nada de achar que direitos humanos são assunto perverso. São conquistas! A questão não é essa: são os exageros de pessoas que se aproveitam, que ganharam a mão e agora laçaram o braço inteiro.

     Enfim, algum filósofo grego famoso já dizia, é necessário seguir o caminho do meio, a busca por equilíbrio. A nossa sociedade, acho, ainda está na fase em que o elástico saiu de um extremo e jaz no outro. Rezemos para que o retorno esteja a caminho.

     Enquanto isso, treteiros e administradores de grupos de zap, tentemos buscar esse ideal: nem oito, nem oitenta. Permitamos mais tretas, estabelecendo as regras da briga com sabedoria. Saibamos quando intervir com o gongo para colocar um lutador caído à salvo. Tenhamos consciência do que, de fato, é novo nessa querela e do que, porém, é tão velho como nossa espécie.

     Desejo abençoadas tretas a todos e todas.

 

 

12.06.24