MÚSICA COMO GATILHO

Algo dentro de mim desativou o encanto pela música. O que antes era arrebatamento agora é uma câmara de tortura. Ouvir uma canção, principalmente uma canção que fala de amor, é apertar um gatilho contra meu coração. O que oficialmente chamo de coração, por falta de uma palavra que defina melhor.

Desde que me separei não consigo encontrar prazer em ouvir canções. O que antes me trazia acalanto, hoje é apenas uma senha para que os demônios devorem o que resta da minha motivação. Dedicados, eles executam sua tarefa com um ardor, que considero desnecessário.

Não sei quanto tempo vai durar esse tipo de quarentena. Posso dizer que já dura pelo menos cem dias e é como amputar parte do meu entrelaçamento com o mundo. Saborear música é um traço importante do meu relacionamento com a vida. Em tempos normais, era um tipo de bálsamo para quase qualquer ferida. Atualmente é uma faca amolada, obedecendo alguma ordem misteriosa. Uma faca que se atraca contra mim, com senso de dever e urgência.

Hoje, resolvi confrontar essa estranha confraria de seres que acampam em minha órbita. Há rebeldes que inauguram revoluções, que inventam guerras. Sou um rebelde que volta a escutar música. Um rebelde que está no exílio, mas que às vezes quer se sentir em casa.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 19/11/2022
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