Desplugando

 

 

    Ah, nada como viver nesta nossa era-como-nenhuma-outra-jamais-existirá da arte-ciência-filosofia da comunicação!

    Sim, pois tudo hoje é link!

    Por isso tudo precisa ser semfiotizado ou USBetizado...

    Por isso tudo precisa ser palavra-chavetizado e algoritmizado...

 

    Mas nenhuma outra metáfora pode aqui melhor evocar esse estado de coisas do que a do jovem de mil sonhos.

    Imagine-o.

    Lá na arborizada avenida de uma manhã primaveril caminha ele a passos largos para sua alma mater, com um desajeitado andar esperançoso de um futuro qualquer na mochila, mas ainda assim um futuro.

    E sua alma materna em casa esfola os joelhos a rogar por um futuro que seja bom, que seja a realização de ao menos um punhadinho dos sonhos desse jovem que é amado ao ponto de por ele dar-se a vida.

    Conte esses sonhos. Enumere-os. Eles já foram seus...

    Talvez simplesmente ser aceito pelos pares; talvez simplesmente ser notado por alguma bem-amada; talvez simplesmente dar conta; talvez simplesmente chegar ao fim dessa jornada intelectiva; talvez depois contribuir para um mundo melhor; talvez depois ser feliz ou tentar fazer alguém feliz: mas, ainda assim, um futuro!

    É isso que é ser jovem: ter um futuro.

    É isso que comunica o jovem com o velho: o velho é o que o jovem não querendo quer ser. Não há juventude sem link. O link representa o que ainda não é e isso é sonho. O sonho é e ao mesmo tempo não é.

    Esse jovem já foi você...

    Certamente também você já olhou para algum mestre sisudo, talvez ainda nos tempos da gravata, com um sorriso livresco embutido numa face ingênua de menino que quer a aprovação da alma ‘pater’.

    Certamente também você já temeu ser fitado por sisudos olhos, talvez ainda nos tempos da bravata, com um sorriso burlesco embutido numa face tímida de menino que quer a aprovação da alma grupal.

    Certamente...

 

    Mas até o wireless pode perder sua força;

    Mas até a fiação pode ser roída por ratos;

    E algoritmos podem ser algocruéis;

    E palavras-chave podem fechar mundos ao invés de abri-los!

 

    Imagine o jovem. Ele está plugado.

    Com ou sem fio, ele é comunicação total com seu futuro: nesse cabo de fibra ótica atravessam viagens, prêmios, beijos, transas, tranças, bofetões, xingamentos, uma noite bem dormida, uma semana daquelas, o livro devorado sob a sombra refrescante de uma frondosa árvore no campus universitário, a brincadeira gostosa de fazer cócegas nos filhos, o auxílio ao vovô que já não caminha direito, a picanha com sal e gordura no ponto causando sensação no meio dos dentes, a partida memorável de pôquer, ou ludo, ou uno ou qualquer outro lúdico momento vivido em grupo e saboreado em doses eternas de guaraná e rufles, o dia em que se percebeu o mais maravilhoso pôr-do-sol em tons laranja e vermelho, o dia em que se percebeu que pessoas sabem ser intencionalmente maldosas no trabalho, o primeiro carro, o primeiro vinho sorvido lentamente como um leigo que se julga um sommelier só por ter lido um único livro sobre vinhos, o revigorante sono de domingo à tarde que fez pegar no sono novamente só na madrugada da segunda-feira e passar o resto do dia praguejando, a primeira flor realmente vista em sua plenitude de primoroso símbolo de vida e morte e em sua plena exuberância de cheiros e formas, o Super Mário World ou o dinossauro que salta na tecla space, a dança onde se pisou no pé do par ou a dança sensual que a esposa não conseguiu terminar, a fada do dente, o saci-pererê, Maurício de Souza ou Dostoiévski, a Divina Comédia que nunca se terminou de ler ou o verso minimalista do tamanho de Dante, água quando se está com sede, as águas de março ou o frio nas canelas do sul, chimarrão ou cerveja, as manhãs do norte do mundo e as noite ao som do bugio ou da vaneira, os Beatles sucedidos por Liszt, a op art que pode ser a porta de entrada para Kandinsky ou Stravinsky ou whisky, segurar a mão da mulher no parto ou as mãos do filho na oração noturna, a briga com o pai furioso por se chegar as três da madrugada com bafo de bebida alcoólica, o perdão, ah... o perdão!, o gozo, seja do riso incontido que fez doer a barriga ou do clímax sexual, a casa velha e misteriosa que tinha na vizinhança, o acampamento em que ninguém dormiu direito porque tinha muito mosquito ou porque choveu e molhou dentro da barraca, a roda de cantoria, a morte do tio, da tia, do pai, do irmão ou do filho.

 

***

 

    Nenhum grande erudito classificou as mortes. Sem querer esgotar o assunto, acho que poderíamos, ao menos, elencar as seguintes: 1) morte de velho – a melhor, pois foi planejada por Deus e, quando chega, ninguém quer, mas todos a desejam como fim; 2) morte desejada – menos melhor, pois é polêmico adivinhar o que Deus pensa, mas quando chega, os vivos não querem, mas o morto a desejou como fim; pode ser classificada em suicídio ou eutanásia, respectivamente conforme o grau de não aceitação social; 3) morte dos não velhos – um grau abaixo e se divide em: a) morte por doença – é permitida por Deus, mas quando chega ninguém quer e ninguém a deseja como fim; b) morte por acidente – é tolerada por Deus, e também quando chega ninguém quer e ninguém a deseja como fim; - 4) morte matada – a pior, pois, embora alguém a tenha querido, não foi planejada por Deus, ninguém a deseja como fim e quem mata depois sofre com o desejo dos outros de lhe impingirem o mesmo fim que o morto.

    Matar é romper toda comunicação, todo link.

    Matar é arrogar-se o direito de tirar todo o direito.

    É tirar a roda de canto, o vinho, a barraca...

    É tirar o pai de seu filho ou a filha de sua mãe...

    Matar é tirar o velho do jovem.

    Por isso matar tem de ser pecado.

    Por isso todo e qualquer aborto de vidas que poderiam ser vividas tem de ser pecado.

    Por isso você não quer ser morto.

    Por isso você não quer matar.

    Mas, se um dia o ódio lhe instilar esse desejo, você deve lembrar que matar é não deixar o jovem chegar ao destino daquela manhã, é não deixar o jovem abrir a mochila, é simplesmente nada mais deixar, é apagar o jovem da rua, tirar sua sombra do asfalto.

    É assassinar mil sonhos, pois não haverá mais jovem.

    E se isso não lhe causa lágrimas, você simplesmente não entendeu a vida!

    Só lhe resta clamar àquele que tudo re-liga...

 

Daniel do Vale

0h56 de 16.06.2022