Pandemia: Esperança e revolta
A sensação é de que estamos segurando frágeis cordas, cujos fios se arrebentam um a um, continuamente, sem outro final que não seja a queda no abismo. A pequena esperança se cala constrangida ao barulho vitorioso do desespero, que se agiganta lá no fundo do precipício.
Com essa noite longa, interminável, a impressão é de que não haverá mais Sol. Sem amanhã de vida. Apenas o eterno hoje de mortes.
Essa é a sensação... Afinal, quando tudo se queima, só podemos sentir insuportável calor e desagradável cheiro de fumaça. Quando tudo é devorado pelo fogo da morte, tudo se transforma no próprio fogo, na própria morte. No reino da morte, não há lugar para a vida.
Não há?
Há ou, ao menos, é preferível que haja. Convivemos nesses tempos com mortes e vírus, não apenas mortes e vírus em sentidos estritos. As pessoas morrem de diversas formas e são contaminadas de várias maneiras. As tantas mortes reais do vírus real são provocadas, muitas vezes, pelas mortes e vírus simbólicos.
Por isso, apesar das mortes e por causa delas, é preciso afirmar a vida.
Não podemos permitir que nos matem nem que nos matemos em nós mesmos e nos outros. É preciso teimar voz diante de berros de cala a boca. É preciso cuidar do outro em resposta ao “cuida da sua vida” e ao “eu faço o que quero". É preciso navegar sonhos em mares de pesadelo.
Não se trata de otimismo inócuo, mas de esperança fértil, esperança que teima, que resiste, que alimenta (e se alimenta de) vida. Não é esperança negacionista – isso é impossível, pois não há esperança no negacionismo. Também não é esperança do além-vida. É a esperança real de gente de carne, osso e lágrimas. Esperança concreta.
Quando a resistência mais firme se encontra com a vida em toda sua realidade, nasce a esperança concreta, a esperança de pés na terra, mesmo que seja um doloroso chão – ainda mais sendo um doloroso chão.
É a revolta. Não uma revolta de desistir de tudo, de ser vencido pelo cansaço, pela desesperança. É a revolta nos termos de Albert Camus. “A lógica do revoltado” – afirma esse filósofo – “é querer servir a justiça a fim de não aumentar a injustiça da condição humana, esforçar-se no sentido de uma linguagem clara para não aumentar a mentira universal e apostar, diante do sofrimento humano, na felicidade.” (O homem revoltado, p. 327).
Diante de tantas mortes e das tantas formas de matar e de morrer, é necessário revoltar-se para afirmar a vida com esperança concreta. Se ainda há corda, por mais frágil que seja, o fundo do abismo não é a única alternativa possível.