Todas as Marias
Todas as Marias
maria da graça almeida
O servir - ainda que profissionalmente correto – exaure o corpo.
A indisponibilidade para a condição do servir
-ainda que por motivos alheios à vontade própria-debilita a alma.
maria da graça almeida
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Maria Preta
maria da graça almeida
Ao vestir-me todos os dias, com os panos pra abotoar,
ordenava à preta Maria, que cedo me viesse ajudar.
Chegando-me aos resmungos, jurava-me um par de palmadas,
mas, boa, a mão calejada, doía-me só quando gelada.
E, aos brados, quando a chamava, a negra atendia sentida,
dizia ser eu bem folgada, moçoila um tanto atrevida!
Fazendo graça e pirraça, fingia não a compreender,
e nem ficava vexada em usá-la a meu bel-prazer.
Porém, clareando, um dia, nos olhos ira e aflição,
entrou-me no quarto, Maria, com gorda trouxa à mão.
Trazia-me o adeus nessa hora: da luta, estava cansada...
e eu, que há pouco acordara, deixei a cama assustada.
Em vão tentei entender a brusca atitude tomada,
porque em toda a vida, não vira a negra suada.
Julgava que sendo forte, jamais lhe batesse o cansaço,
que não ficasse doente e valente lhe fosse o braço.
Pra que mudasse de idéia, até insisti com firmeza,
mas, cruel, Maria me olhava com certa e dura frieza.
Saindo sem mais delongas, bateu-me a porta do quarto,
meu olho estupefato saltou ante a falta de tato.
Debrucei-me à janela, deveras arrependida
pelos abusos diários que lhe dobraram a lida.
Aflita, de fora, chorosa, Maria olhou para mim
e debulhada em queixas, abriu-me o motivo, enfim:
- Antonte, ovi ocê falá
qui us pano de muito botão
é coisa de gente criança
e ocê num qué eles mais, não...
Maria da Graça Almeida
Antologia Lyra de Bronze
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O servir -ainda que, às vezes, religiosamente
correto- cansa. Cada um responde ao servilismo
como melhor lhe aprouver.
Maria da Graça ALmeida
Maria Mortalha
Maria da Graça Almeida
Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,
vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.
Os olhos tanto mais fundos coroados por olheiras
cerravam-se moribundos nessa hora derradeira.
Implorando-lhe ajuda veio um moleque qualquer
- Vó, apanha uma agulha, tira-me o bicho do pé!
Servil levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha
e já mais morta que viva o bicho do pé estraçalha.
Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,
quando lhe chega a nora, chorando a fome e a sorte.
Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,
serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.
Com a fome então saciada e o corpo fortalecido,
parte a jovem senhora com olhos agradecidos.
Maria assim, novamente, põe-se no leito de palha,
julgando que certamente não mais tiraria a mortalha.
E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.
Queria do sal só um pouco que lhe salgasse o feijão.
Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...
pra atender a boa vizinha, ergueu-se mesmo ofegante.
Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.
Maria já fria descora e aguarda da Morte a hora.
A Morte que vinha chegando notou-a em pele ardente,
porém, percebeu que a lida tornara Maria valente.
Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,
ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.
Maria, surpresa, coloca os olhos esbugalhados
sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.
A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,
ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!
E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,
exige-lhe que ao fogo torne o leite que frio jazia.
Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha
e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte detalha:
- Em face dos desmandos alheios,
viverei mais um ano e meio.
Maria da Graça Almeida/2001
texto publicado na Antologia Prêmio Cultura Nacional
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Maria Parideira
maria da graça almeida
Maria, olhos carentes, coração, perpétuo salto,
tinha sonhos indecentes de doar-se no asfalto.
Neta da velha Gertrudes, carpideira de primeira,
via avó sobre ataúdes comandando a choradeira.
Gertrudes para Maria: -Deságüe mais amiúde!
Mas, Maria era feliz!-Pra que chorar, vó Gertrudes?
A avó, sim, argumentava:-Temo o pão a nos faltar!
E Maria só pensava em rir, sorrir e folgar.
Numa tarde então fagueira, de um rapaz de muito trato,
a Maria hospitaleira inteira entrega-se ao tato.
Ao mocinho das botinas deu-se a beldade sem dó,
pois que o jovem da cidade era bonito que só!
E o desfrute de Maria preocupava a velha avó:
-Toma tento, ó guria, cuida de afinar seu pranto,
da barriga mais vazia só se ouve um triste canto!
Maria no traje florido ria-se de jeito atrevido.
Pensava nos remelexos, no visgo molhando o queixo,
nos seios empoeirados, no prazer inusitado.
E o rapaz das belas botas num triste dia sumiu.
Maria, por sina ou desdita, de casa não mais saiu.
Da figura avolumada já o povo maldizia:
-Maria assim engordada isso “tá” cheirando à cria!
E a moça enfim mulher quedava-se a recordar
do amor que inda queria, ingênua, alimentar!
Quando o ventre intumesceu, pôs-se ao rumo da cidade.
A buscar um sonho ateu, olvidava a realidade.
E por lá nasce o rebento da mocinha parideira,
que vivia à procura da botina domingueira.
Sob o vestido florido, o corpo cedia aos homens.
Quanto mais filho parido, tanto maior sua fome.
Quando cansada do asfalto, com os filhos em fileira,
rota, triste, sem sapatos, volta ao lar a parideira.
A pobre chora e se queixa, ouvindo a avó contrafeita:
- Nada de pingos, Maria, guarde todos, um por um,
pois que hoje, neste dia, morto aqui não há nenhum!
Reserve as gotas, mulher, para um defunto incomum.
Chorar assim com efeito, só em cima dos filós!
E Maria por respeito resseca as gotas no pó.
No dia seguinte, cruzes, Maria assim que acordou,
olhou dorida e com medo para a cena que a açoitou.
A avó recém-falecida debruçada sobre a pia.
Visão nua e sofrida, um repente de agonia.
A notícia correu presta na dor em vão manifesta.
Os soluços no ataúde já não eram de Gertrudes,
pois que ali sem emoção, os olhos sob a mantilha,
entrelaçadas as mãos, jazia alva no caixão.
Maria chorava e gemia sobre Gertrudes inerte,
por fim, naquele dia, as gotas desceram férteis.
Mas, eis que da parideira quase pára o coração,
pois, a avó, velha matreira, piscando, toca-lhe a mão,
vendo a platéia dispersa, arrisca com voz discreta:
-Agora sim, minha neta, este choro é dos bons.
Nenhum velório é festa, entenda a minha razão:
quando da falta do pão, chora-se em qualquer caixão.
Dessa hora derradeira, Maria não mais pariu,
lá nascia a carpideira mais chorosa do Brasil!
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Maria Maré
maria da graça almeida
Entardecida, Maria Maré,
plantada no chão, firmada na fé,
trazia o pé fincado na areia,
a impedir a maré de cheias mais cheias.
Nos olhos brilhantes, duas luas inteiras,
no peito maduro, a vontade e meia:
- Que Deus me acate, atenda e acuda,
só hoje e sempre lhe peço a ajuda!
E Deus, que lhe dava a boa mãozinha,
nunca a deixava na praia sozinha,
com todo cuidado, zelo ou desvelo
trazia-lhe a água só pelo joelho.
Até que um dia, Maria folgou
e bem nesse dia a Deus não rezou!
Maria, a lua, fitou nesse instante
e o mar se achegou, então, ondulante,
Com força, as ondas se avolumaram,
bravas e impunes mais espumaram,
líquidas línguas lamberam o solo,
querendo deitar, de Maria, no colo.
Rugindo, o mar galgou-lhe as pernas
e pôs-se alargado em gotas eternas,
incauto, molhou-lhe o xale, a saia,
subindo às casas e ruas da praia.
Hoje as águas de vez soberanas
abundam com os pingos que ainda emanam
da estátua de sal que chora saudade,
compadecida da antiga cidade.
A lua no céu sorri zombeteira
e exalta o dia em que, sorrateira,
enlevando Maria, distraiu-lhe a fé,
fazendo perpétua a cheia maré.
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Maria Beata
maria da graça almeida
E lá vai ela...Maria Beata.
Maria no nome e na intenção.
Beata na fama e na devoção.
Na brejeirice exagerada,
segue solitária de corpo e coração,
bamboleando pela calçada
-a passarela dos anônimos-
onde, sob a chuva,
experimenta o sabor
e as delícias do despudor.
Displicente, joga o cabelo pro lado.
No cós da saia de seda,
mais algumas voltas
liberam-lhe os joelhos
e um palmo de coxas bronzeadas.
Na blusa bem passada,
certo jeito...e os ombros, à mostra.
Esquisito, um riso de tara
estica- lhe os lábios lambuzados
no batom que os mascara.
Do alto da construção, homens assoviam.
A água cola-lhe a blusa branca.
Sob a transparência da lingerie rendada,
o bico teso dos seios perfeitos.
Endireita as costas, empina as nádegas,
sacode a cabeleira.
Ondulantes, os quadris dançam sob
a melodia de um coro
de demônios insatisfeitos.
Os olhares na altura vibram. Aplaudem.
A água desce-lhe pela face, molha-lhe o colo,
lava-lhe as pernas depiladas.
Gotas preguiçosas chegam ao tornozelo e descansam
no sapato de fino trato.É o fim do percurso.
Vagarosamente, desnuda o busto.
Num remexer de ombros,
sacoleja os seios, de vez, nus. Dobra-se.
Com gestual audacioso, ensaiado, agradece.
Lentamente fecha a blusa , recompõe-se.
Insana, a gritaria desce dos céus, enche a rua.
De soslaio, Maria confere a privacidade.
Transeuntes desavisados olham -só para cima-
em busca da algazarra e do vozerio troante.
A mulher disfarça. Mantido o segredo,
calada, apertado o terço entre os dedos,
retoma a caminhada, elegante, imaculada.
Da solidão acompanhada, segue Maria Beata,
incólume. Recatada.
Um bocadinho de festa aos olhos
ermitões custa pouco! Quase nada...
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Maria Alzira
maria da graça almeida
Numa tarde de outono,
conheci Maria Alzira.
Na língua, tanta palavra,
na vida alheia, a mira.
Numa noite de outono,
percebi Maria Alzira.
No peito, amargo o jiló,
na trilha, a sombra de um só.
Dos lábios, vazava o som,
da boca, jorrava a ira.
Com rigor, com euforia,
dizia do que mal sabia.
Se a saliva fosse santa,
se dormente fosse a goela,
ou se plácida, a garganta,
não seria Alzira, aquela.
- Ó gente, não sabia, não?
Alzira, sem coração,
na pergunta flagelante,
imprimia frio cortante.
A voz, de maldade, rouca,
vil, enchia-lhe a boca.
Caluniava as andorinhas,
mesmo ao falar sozinha.
Um dia, cedeu à cegueira,
e engraçou-se com Mineiro,
moço da baba ligeira
e do semblante trigueiro.
O seu dito ficou manso.
A voz, aí, benevolente,
desde o fundo da barriga,
pôs-lhe o dito doce e quente.
Numa tarde de outono,
relegada foi Alzira,
pelo olhar do abandono,
pelo amor roto, em tiras.
Nessa noite de outono,
encontrada foi Alzira.
Nos lábios, tanto açúcar,
na boca, tanta formiga!
-No resgate de tal dama,
minha palavra não míngua.
A tal moça tinha a fama
bem maior do que a língua-
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Maria-menino
maria da graça almeida
Bem se deve entender
o poder da criação.
Não se pode refazer
o teor da produção.
Quem conhece a escrita
saberá, por onde for,
que o "Gene" é quem edita
as tendências do amor.
Seu jeito sem manhas
é coisa que a gente,
às vezes, entende ,
às vezes, estranha.
Da mesma semente,
Maria prefere.
Precoce, pretere
o olor diferente.
Camufla o destino
com falso pronome.
Na alma, menino,
menina, no nome.
maria da graça almeida
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MARIA FUMAÇA
maria da graça Almeida
Vem Maria,
vem fumaça,
vem fungando,
vem com graça,
é gulosa
e sem fome
muita lenha
sempre come.
Resfolega,
pelos morros,
solta nuvens
por pirraça,
deixa rastro
no caminho,
faz ruído
quando passa.
Já de longe
alto apita,
rebolando,
chega aflita,
diz que está
em sua hora,
diz que nunca
se demora,
diz que chega
tão depressa
e com pressa
vai-se embora!
Todo dia
eu espero
que na curva
apareça,
só desejo
que a fumaça
o meu céu
não escureça!
Maria Fumaça
é trem ou Maria?
Menino ou mulher ?
Responda-me agora
ou quando puder.
Chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...ufffff!
maria da graça almeida
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