O momento de Narciso -

INTRODUÇÃO

Eu tinha decidido não mexer mais nos meus trabalhos apesar deles representarem, para mim, um lento processo de fantasias vividas intensamente e que, uma vez deflagradas, após seguirem sua trajetória rumo ao alvo, voltaram às minhas mãos que nem bumerangues para passar um tempo no fundo do baú, curtindo eternidades em silêncio branco.

Um dia, remexendo meus “bilongues”, escutei ecos que vinham do baú. Era Narciso. Queria luz, precisava respirar, seu tempo de latência tinha se esgotado.

Encarei meus papéis sem medo ou constrangimento. Estava tudo ali, igualzinho, ainda a traço de lápis, hoje em dia meio apagado. Essa mania de fazer tudo à mão... Pensei, pensei, pensei, me dei cinco minutos com aqueles originais na frente dos olhos e pronto: foi o suficiente para Narciso crescer muito, se expandir e não caber mais no baú. O tempo tinha passado, a vida seguia seu fio e, de repente eu entendi que, por mais que a gente cante o Amor, a gente sempre acaba se repetindo, as palavras não alcançam o que o coração sente e a gente acaba dando voltas e mais voltas em torno do sentimento, chegando, sem se dar conta, ao ponto de partida.

É uma coisa muito louca essa do amor porque ele se atualiza no ser amado, isto é, o ser amado tem sempre um cheiro diferente, um brilho mais intenso, um jeito tão peculiar de provocar sensações... mas a gente sente sempre a mesma coisa. Por isso, ele se torna universal: porque, enquanto ser amado, ele se repete, uma vez que a gente tem uma imagem idealizada deste ser que provoca em nós as mesmas manifestações neuro-vegetativas e afetivas.

Essa imagem idealizada é admirada e a gente só ama o que a gente admira. Às vezes, por causa dessa admiração, nasce uma certa cumplicidade e...

Mas tem uma coisa que é um mistério: se a gente tem um tipo personalizado que desperta admiração e tudo o mais, por que só um, só um mesmo é o escolhido para que se depositem nele todos os nossos sentimentos, positivos e/ou negativos, todas as nossas expectativas?

Em 1987, eu comecei a esboçar o “Momento de Narciso”. Hoje, tanto tempo depois, eu me defronto com emoções tão antigas, plenamente atualizadas em situações e momentos tão parecidos, tão cheios de irrealidade palpável. Quase não uso mais o lápis e o “feito à mão” se destina a outras prioridades porque é muito mais confortável ligar o monitor e digitar rapidamente o que vou pensando, o que estou sentindo. Os dedos quase acompanham o ritmo da mente, vai tudo num crescendo e telas e mais telas vão se enchendo de letras de tamanhos e fontes diferentes, num show à parte, numa distração infinita para quem está escrevendo, num estímulo irresistível para escrever mais e mais – essa coisa incrível da cíbero inspiração.

Se eu pudesse fotografar a minha mente, eu tiraria um retrato desse Amor. Assim, contemplaria com os olhos, a qualquer momento, o que só posso “contemplar”, com a audição, a imaginação e a memória. Me aninharia em seus braços, me perderia nele, mergulharia nas suas profundezas mais secretas, tiraria dos engramas essa impressão de estar te vendo, Amor, e te veria de verdade, eu teria você revelado ao alcance das minhas mãos, impresso para sempre no papel "kodak".

A este ponto nos leva o que se chama Amor. E a muito mais, como, por exemplo, às poesias qualificadas de “intimistas”, sem muito valor para a humanidade, mas tão valiosas enquanto vivências pessoais e intransferíveis...

A linguagem informal é proposital. Em textos assim não há lugar para construções como ‘ver-te-ia’ ou ‘ter-te-ia’ porque ficariam simplesmente fora de lugar.

"introdução" publicada no "recanto das letras" - 24/VIII/2019

nina maurity
Enviado por nina maurity em 24/08/2019
Código do texto: T6728108
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