INSTRUMENTO DO BEM

Aos 71 outonos, circunscrito à certeza da finitude e o sempre possível portal de passagem, cada dia mais me apercebo da linda e trabalhosa missão que o Absoluto colocou em minhas já velhas mãos parkinsonianas, que mais tremem pela emoção de simples e poeticamente sugerir em vez de dizer, do que pelo vaticínio da enfermidade que naturalmente avança, no plano dos fatos. Aprendiz de várias passagens – talvez – o presente itinerário miscigena-se ao pó através das antíteses ao que está posto e sedimentado; porém resiste em querer fazer do poema e seu conteúdo a oração para continuar a missão de provocar, de fundir a polêmica e instigar o espiritual entre os indistintos itinerantes do Bem e do Mal. Sou, sim e apenas, o instrumento de ajuda ao irmão que pode ou não reconstruir-se na graça Dele. E dessa maneira beber a verdade e a luz reservadas aos que têm olhos para ver e ouvidos para o canto da palavra viva do Mistério. É bom e confortador escutar que os meus humildes e despretensiosos textos estejam servindo como "inspiração" para os neófitos, especialmente. Imagino que é por esse vetor racional que os meus "alter egos" aparentem ser tão ágeis em palavras e ações. E me lambuzo de alegria toda vez que iluminam o caminho através da estética e da estranheza que os versos contêm e/ou despertam. Sou instrumento, repito: os diligentes "alter egos" vivem em mim, porém são apenas similitudes de conteúdos vários. Um destes fermentos é o inconsciente coletivo, que nos leva a pontuais observações e constatações. O mistério vive nestas curiosas e incontroláveis personagens anárquicas. São hóspedes incômodos que se locupletam dos neurônios. E me recrio dando a eles passagem ao plano consciente e capaz de ser entendido além de mim. Ser útil e honesto ao semelhante condenado ao verso é a minha pena. Este exercício do sentir poético talvez me redima quando da mudança de estado, porque afinal terei aprendido que aquele humano ser que se entrega ao Outro é raiz exemplar para todas as criaturas do Bem. Importante e serena cadeia de união a serviço de causas úteis e beneméritas para o coletivo.

– Do livro A PALAVRA INSENSATA, 2017.

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