O DIA

Foi há muito tempo, era ainda uma criança, aconteceu na missa dominical.

Manha de sol, devia ser primavera, mas também podia ser outra estação qualquer.

Igreja imponente, relicário da fé, cidadãos reunidos, alguns crentes fervorosos, outros...nem tanto, como se diz por aí: “não praticantes”.

Sempre me perguntei de que vale um credo que não se pratica, imagino o que faria Irmã Celina, professora tão zelosa de catecismo, se lhe perguntasse isso assim, de chofre.(mas isso iria desviar o assunto.)

Naquela manhã o Santuário estava particularmente cheio, haveria uma importante presença de alguma figura política, ou coisa que o valha, já que a cidade pequena, histórica e pitoresca era reduto do que hoje é visto como lenda:“o coronelismo”.

Pra quem não sabe...o famoso coronel (proprietario de terras ou não) que detinha poderes sobre seus servos, assalariados ou não, do “voto de cabresto”...não sei se algo mudou de lá pra cá, talvez o método de coação, ou quanto vale o voto...se é que algo mudou...voltemos ao dia...

Havia a cadeira de “honra” ao lado do púlpito, ocupada logicamente, por esse personagem ilustre, que por certo leria uma passagem pré escolhida como tema de abertura a liturgia e ao sermão do pároco, algo muito comum nas missas de antigamente.

Famílias apertavam-se nos bancos de madeira de lei, maciça, claro, alguém já viu em alguma igreja material de segunda? Penso que o clero não levava muito a sério a tal consciência ecológica, ou quem sabe, doutos que deveriam ser tão sábios saibam algo que nós desconhecemos sobre uma ilimitada regeneração planetária independente do uso abusivo? E cá estou, a desviar novamente o assunto. Bem, a não ser pela comunidade presente em peso naquela manha de domingo, nada haveria de tão diferente na missa, não para mim, ainda deslumbrada com os dogmas do catecismo recém concluído.

Compenetrada nas palavras do sermão, sobre “a guarda do dia santificado, DIA DO SENHOR”...embevecida com a oratória do Padre, como presumo estavam os demais congregados, fui bruscamente retirada daquele estado quase que hipnótico por uma voz engrolada a perguntar:

- ô seu Padre, se sábado é o Dia do Senhor, de quem são os outros dias?

Silencio geral...seguido de “ohs! ahs! E outras exclamações indignadas, interrompendo a seqüência da missa, visualizava-se na ultima fila dos bancos, em pé, um senhor conhecido na cidade como o “Zé do banco” alcunha ganha por freqüentar o banco da pracinha sempre em evidente estado de alta bebedeira, porem digamos a seu favor, sem jamais faltar ao respeito com os transeuntes que ali passavam.

Não recordo de todo como terminou a missa naquele dia...amnésia da infância , talvez.

Uma coisa ficou marcada...um questionamento óbvio, ainda que subjetivo: “quando dedica-se determinado dia a uma comemoração, exclusiva a esse dia, ausenta-se o motivo da comemoração ou devotamento, aos outros dias ditos “normais”?

Comemorar e reverenciar TODOS OS DIAS como dia do Senhor, dia das mães, dia dos pais, dia do amigo, dia ...., ou é permitido esquecer um em desfavor de outro?

Fico a pensar se o “Zé do banco” teve sua resposta, ou por onde anda tal personagem tão culturalmente presente nas cidades e nas vidas entrelaçadas dos ausentes.

Anônimos, desconhecidos, sombras ou cismas que impedem o auto esquecimento?

Se o padre que rezou a missa daquele domingo ainda estivesse vivo, hoje, seria uma pergunta que eu faria: que dia não é O DIA?