Tensão e Ódio
Tensão e Ódio
Decorria o ano de 1998, num dos países dos Balcãs, gélido de um rigoroso Inverno, mas as tensões entre etnias e confissões religiosas explodiam do nada, rubras de ódio assassino, num imenso furor que era preciso travar urgentemente.
As principais etnias nesse país gladiavam-se em murmúrios de fúria incontida que exigiam uma vigilância exaustiva e constante, de acusações rancorosas, ora verdadeiras ora falsas, derivadas do ainda recente conflito armado que ali grassou demoníaco e sanguinário.
Estando eu integrado, ao serviço de Portugal, na Força de Paz das Nações Unidas, fui indigitado para chefiar as academias de polícia da área de Sarajevo, com outros instrutores e instruendos da polícia local e oriundos de outros países presentes na missão. Este posto de comando iria exigir de mim toda a minha capacidade de organizador, instrutor e de supervisor porque a situação era mais que estranha e complexa.
Estavam presentes agentes e comandos da polícia local, estes já por si divididos pelas três principais etnias – sérvia, croata e muçulmana, e oriundos de mais quarenta e cinco países dos vários continentes, numa babel de sotaques, religiões, formas de estar e sentir.
Entre os elementos da polícia local sentia-se a tensão rancorosa. Mal pagos, assoberbados de trabalho, enxovalhados continuamente pelos seus superiores, incompreendidos pela população ou malquistos (muitos agentes, contra toda a Convenção de Genebra, tinham sido forçados a combater nas várias frentes de batalha e nas três etnias respectivas), os agentes agiam rudemente, mesmo entre si, fardava-se sem rigor e desrespeitavam as ordens, normas de segurança e avisos. Também não viam com bons olhos a presença de estrangeiros como eu, ainda por cima em função de comando ou de instrução, que ousavam desafiar com o olhar impertinente ou, chamados à atenção, eram “atacados de incompreensão linguística” mesmo com o uso de tradutores.
No primeiro dia de instrução, nas prelecções oficiais com a presença de vários governantes, foram-me apresentados cumprimentos e solicitada a minha intervenção oratória. Nela, apesar de breve, apresentei em traços largos a missão de um agente policial e o que se esperava eticamente dele. Era o último interveniente e os presentes tornaram-se irrequietos e murmuradores, criando um mal-estar geral.
A minha reacção imediata foi chamá-los à ordem com voz de comando militar, solicitar aos ministros do interior (dois, um sérvio, outro da coligação crota-muçulmana, pois o país ainda hoje está dividido internamente com fronteiras e governos próprios, à excepção do presidente da república que é rotativo e periódico pelas três etnias) a dispensa da nossa presença numa atitude mais rígida que pode ser exigida a um agente em comando.
Chamei à minha presença três instrutores internacionais e os três comandantes da polícia local e asseverei que factos como os que tinham acontecido jamais ocorreriam com ou sem a minha presença sob pena de comunicação imediata às autoridades nacionais e das Nações Unidas e responsabilização pessoal dos três comandantes ali presentes. Aos coordenadores internacionais solicitei uma supervisão atenta e personalizada de todas as actividades.
A partir do segundo dia, estando sempre eu presente geralmente uma a uma hora e meia antes de se iniciarem as actividades, a academia funcionou numa “irrequieta” e aparente tranquilidade.
Mas algo esteve sempre latente – o ódio acumulado antes, durante e depois do conflito – que degenerou em pequenas picardias entre os agentes locais e, um dia, um agente de etnia sérvia negou-se a cumprir as ordens de um instrutor de etnia croata e a violência estalou entre os dois e, infortunadamente, aplaudida pelas facções de origem.
Processos, audições, contra-processos e contra-audições nada mais trouxeram que mais lamentações dolorosas de ambas as partes. Pedi a demissão das funções face à passividade dos organismos internacionais envolvidos, não me foi dada… Apenas, os dois contendores foram destacados para outras academias diferentes. Esta situação foi-me extremamente dolorosa porque deixei de acreditar na pacificação dos povos e na capacidade de decisão das intervenções internacionais; elas buscam mais os lucros financeiros e políticos num futuro próximo que a paz e a protecção dos indefesos.
Eu jamais integrei outra força de paz por minha decisão pessoal, mas senti-me ceder e entrar no grupo da indiferença criminosa por dever de obediência.
João Loureiro
Chefe
Ex-IPTF / UNMIBH - 1998 / 1999
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