Àquele que foi meu companheiro


A ti, a quem também
só resta a linguagem
na realidade dos fatos...
A ti, ser ímpar
que foste meu companheiro
por tantos anos...
para minha honra
e amplitude de mundos...

A ti, ser tão só como eu tão só
talvez ainda mais só
neste ermo dos dias dos dias
neste enquanto sem palavras dizíveis

A ti, o que dizer-te?
Que voltes a ser meu companheiro?
Somos livres, eu e tu,
é verdade
no real imediato dos dias
talvez eu o seja sempre
talvez...

essa liberdade para a solidão...
Talvez... talvez...
Independente deste talvez
és meu amigo
sinto uma terrível falta de ti
de ti que falas minha linguagem
em um mundo no qual

no palpável dos dias
nesse dia-a-dia dos dias
em que ninguém fala a minha linguagem
aliás, aqui, no palpável dos dias
a sala,meu habitat, é feita só de silêncio...
com a paineira, o sol, a lua, as estrelas
a chuva, as pessoas
sempre do lado de fora...

Em teu habitat, também
a solidão e o silêncio
são rainha e rei
mas, no teu habitat,
não há simulacros de presenças
- Que o Deus me perdoe
pelo horror disto que digo
mas o Deus sabe
que este é o meu real palpável
à parte afetos sagrados...

Como dizer-te a ti, homem
que te quero e que de ti necessito
como o meu grande amigo
o meu grande, quiçá maior
cúmplice de linguagem?

Como dizer-te
que trazer-te de volta
como homem
como meu homem
é trazer de volta junto
com as coisas boas
sombras que não me vieram de ti?

Não posso trair-te, homem,
que, como mulher, não posso dar-te
o que já não sou
eu, que nem sei
se ainda sou
se é que ainda
alguma coisa eu seja...

Talvez o meu destino
seja a solidão real mais plena
sempre...
Não o sei
eu, ser sem certezas,
nada ouso afirmar
sequer isso...
sequer isso...

Seja como for
ser mais do que tua amiga
nos tempos deste agora
isto seria trair-me
e traindo-me
estaria traindo-te
oh, ser ímpar, amigo ímpar!

Deuses, como dizer a um homem
que foi  o meu companheiro
aquele que me chamava de turca
nos momentos de maior ternura
- que oriental pareço
sem o ser
apesar também do nome
de origem persa -
 
como dizer a este homem:
Sê meu amigo
sê apenas e tão somente
meu amigo
como se não tivéssemos
- em nosso caso -
como se não mais tivéssemos corpos?


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Não sei que flor dar-te
nunca soube tua flor preferida...
A ti, que podias ter sido um sufista
um místico oriental...
A ti que, no entanto,
não crês em nada
para além da matéria perecível,
te ofereço, como aos pacifistas do mundo,
pela terceira vez neste Recanto

uma imagem de mim
a cabeça coberta com um lenço
como se oriental  eu fora, mesmo,
em nome de uma Paz
que desejo
em nome de Alah
em nome do Cristo
em nome do Buda
(...)

em nome dos ateus também
como meu pai, Luiz,
que viveu e que morreu
levando com ele
seu sonho de Paz
para este país
para os homens
para a espécie
a tal espécie homo sapiens

te ofereço, a ti, também,
homem ímpar, que foste meu companheiro
a foto desta mulher de lenço
e relembro: "Alah, el onisciente, nunca duerme."

Ah, eu me lembro...
Eu me lembro...
Em mim não há
nenhum poder de esquecimento...