CONSTRUÍNDO UMA REDE LUSÓFONA DE DIREITOS HUMANOS

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Nº 114 - 26/02/2005

CONSTRUÍNDO UMA REDE LUSÓFONA DE DIREITOS HUMANOS

Direitos Humanos para todos os Cabo-Verdianos e todos os Potiguares!

O coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) de Natal (RN), que representou a Rede Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte (REDH-RN) na I Conferência Internacional de Direitos Humanos de Cabo Verde, relata a experiência do encontro e os elos criados entre os dois lados do Atlântico

Por Roberto de Oliveira Monte

Nos dias 15 e 16 de fevereiro participei do I Encontro Internacional de Direitos Humanos de Cabo Verde, na cidade de Praia, capital daquele país africano de língua portuguesa. O Encontro focalizou-se em dois aspetos: o primeiro foi o Direito Internacional dos Direitos Humanos (os tribunais penais internacionais, os macro-sistemas de proteção, etc.), com palestras de juristas cabo-verdianos e uma intervenção de Adama Dieng, do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda; o segundo foi a Educação em Direitos Humanos, onde o professor da Universidade de São Paulo (USP) Dalmo de Abreu Dallari descreveu a situação atual do Brasil nesta área, eu discursei sobre formação e sensibilização sobre os Direitos Humanos e a professora Maria Rosa Afonso de Portugal e o Dr. Jorge Carlos Fonseca de Cabo Verde aportaram ulteriores contribuições para o debate.

Minha intervenção esteve divididas em três partes: os elos de convergência, a comunicação e a educação em Direitos Humanos e o que vamos fazer em termos práticos com Cabo Verde. A palestra terminou com a projeção do vídeo da Caravana de Direitos Humanos que a Rede Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte realizou em maio de 2004 em Mossoró, segunda maior cidade do Estado depois de Natal, que foi muito apreciado pelo público presente.

Inicialmente, quis ressaltar alguns pontos de convergência entre o nosso trabalho no Rio Grande do Norte, o que está sendo realizado em Cabo Verde e experiências e pessoas presentes no Encontro. O próprio professor Dalmo Dallari, com o qual temos contato há muito tempo, desde os anos 80; o elo intercontinental representado por Paulo Freire, que nos anos 60 implantou a experiência das 40 horas de Angicos no Rio Grande do Norte, nos anos 70 foi discutir Direitos Humanos em Cabo Verde e na Guiné Bissau e que hoje em Praia é até nome de rua; a presencia muito forte de estudantes cabo-verdianos e da Guiné Bissau no Rio Grande do Norte, especialmente em Natal. Foi, aliás, justamente devido a essa presença que nós criamos, dentro da Rede Estadual de Direitos Humanos – RN, o Núcleo de Direitos Africanos Amílcar Cabral. É através deste último – real ponto de convergência entre o Rio Grande do Norte e a África de língua portuguesa - que, este ano, vamos trabalhar na construção de uma ponte entre nossas experiências aqui e as dos países lusófonos da África, especialmente Cabo Verde.

Outro ponto de convergência que identifiquei é o Programa Nacional de Ação para os Direitos Humanos e a Cidadania de Cabo Verde, que teve como consultor internacional Paulo de Mesquita Neto, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), que - junto com os outros companheiros do NEV/USP Paulo Sérgio Pinheiro e Beatriz Afonso - foi também nosso consultor na elaboração do Programa Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, realizada em 1998 em parceria com a Secretaria de Justiça do Governo do Estado e que foi o segundo do país depois do de São Paulo.

Além disso tudo, nós nordestinos somos os “vizinhos do outro lado do Atlântico”. Ninguém mais do que um nordestino sente-se como em casa em Cabo Verde: lá tem algaroba, salinas, seca... A vegetação, as comidas daquele arquipélago têm muito em comum com as nossas. Eu estive lá para conhecer o que chamo de “o nosso revés africano”.

E se já existia este “elo espiritual”, eu cheguei em Cabo Verde através de “elos virtuais”: lá o Tecido Social é um meio de comunicação extremamente conhecido, ao qual os operadores de Direitos Humanos se referem como algo do dia a dia, e do mesmo modo a Dhnet – Rede Direitos Humanos e Cultura. Isso nos permite refletir sobre o poder do cyber-espaço: não como panacéia, mas como ferramenta de trabalho com a qual nós, no Rio Grande do Norte, temos uma experiência de anos e que se traduziu em resultados palpáveis. O editor-chefe de Tecido Social, Antonino Condorelli, em outubro de 2004 foi para a Argentina graças aos elos internacionais criados por este meio e lá participou da criação de uma rede latino-americana de operadores de Direitos Humanos que vai tomar vida dentro e graças ao cyber-espaço. Eu, em fevereiro de 2005, fui para Cabo Verde pelos mesmos motivos e é graças ao poder da Internet que está sendo possível pensar e articular uma rede lusófona de Direitos Humanos que comece a partir do elo Rio Grande do Norte-Cabo Verde.

Na minha intervenção, ressaltei a importância de glocalizar os sistemas de promoção e proteção aos Direitos Humanos. Hoje temos um sistema global das Nações Unidas, vários sistemas regionais (o da Organização dos Estados Americanos, o da Organização dos Estados Africanos, o da União Européia, etc.), muitos sistemas nacionais (o arcabouço do brasileiro foi construído na IX Conferência Nacional, com caráter deliberativo, que aconteceu em Brasília entre 29 de junho e 2 de julho de 2004) e se estão realizando experiências, como a nossa no Rio Grande do Norte, para a construção de sistemas estaduais, municipais e comunitários. A grande novidade dos sistemas é a concepção de Direitos Humanos como políticas públicas.

Mas nossa experiência quer ser também um grande elo de fusão entre Direitos Humanos como princípios jurídicos e Humanismo como concepção global do ser humano e suas relações com os e o ambiente: como atingir os corações e as mentes. E como sermos, de fato, glocais. Hoje se fala muito em Viena, Durban, Geneva, etc. Mas como chegar a Mindelo, a Praia, a qualquer comunidade (ou conselhos, como eles os chamam) de Cabo Verde? Como atingir os cerca de 450.000 habitantes deste país com políticas públicas, comunicação, educação em Direitos Humanos? Como tornar as nossas ações localizadas, capilarizadas através de um trabalho de formiguinha? Como socializar nosso trabalho e atingir todas as nossas populações, que sejam os 167 municípios do Rio Grande do Norte ou os conselhos cabo-verdianos?

Algo muito relevante da nossa experiência na área de educação em Direitos Humanos, que está estritamente ligada à comunicação (já que textos, áudio, vídeo, espaços virtuais, jogos educativos, etc., não são apenas veículos de comunicação, mas maneiras de educar ou de sensibilizar), é a valorização da arte e a cultura e o resgate da memória histórica. Nossa preocupação com a recuperação, perpetuação e preservação da memória na ótica dos vencidos, principalmente da memória oral e da arte popular como forma de memória oral, cria um elo inevitável com a África, com sua riquíssima tradição de preservação da memória histórica através da oralidade.

Na minha intervenção, também salientei que os combatentes sociais africanos não são apenas Amílcar Cabral, Agustinho Neto, Patrice Lumumba, Samora Machê, Nelson Mandela... Como acontece aqui no Brasil, a história costuma configurar-se como as pirâmides: sabemos os nomes dos faraós sepultados nelas, mas não os daqueles que as construíram. Por isso, como nós queremos fazer aqui através da Rede Brasil de Direitos Humanos, é preciso se resgatar a memória dos oprimidos, dos vencidos, dos combatentes sociais das comunidades africanas e trocar estes conhecimentos para criar uma identidade lusófona na ótica dos povos, contraposta a que foi construída a partir do processo de colonização portuguesa. Há que usinar utopias e sintonizar paixões, que é justamente a palavra de ordem da nossa Rádio Dhnet: a comunicação como ferramenta para agregar e disseminar identidades, culturas, idéias e ações. Nós somos “camelôs e mercadores da cidadania” ou, para usar uma frase de Maiakovski, “antenas da raça”.

A última parte da minha intervenção no I Encontro Nacional de Direitos Humanos de Cabo Verde foi extremamente prática: levantar desafios e propor ações bem concretas. A primeira: a criação do embrião de uma Rede Lusófona de Direitos Humanos para agregar todos os estados que fazem parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. E, de entrada, uma Rede Cabo Verde de Direitos Humanos que exista dentro do cyber-espaço, inspirada na nossa Rede Brasil. Para começar a construir esta rede, vamos trabalhar encima de coisas extremamente concretas: trouxe de Cabo Verde toda a documentação do Encontro e o mais breve possível vamos abrir um sítio web, hospedado na Dhnet, sobre a I Conferência de Direitos Humanos daquele país. Ampliamos nossos contatos com entidades e instituições de Direitos Humanos cabo-verdianas: entidades que trabalham com portadores de deficiência, militantes da luta anti-manicomial, novos membros da própria Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania (CNDHC) que organizou o Encontro e que me convidou, etc. Muitas entidades e pessoas em Cabo Verde produzem informação sobre Direitos Humanos e nós vamos fazer tudo o possível para divulgá-las, seja através do Tecido Social como das nossas ferramentas da Internet.

Por outro lado, levei cerca de 50 CD’s da nossa Enciclopédia Digital de Direitos Humanos que distribui às entidades e instituições com as quais me articulei e vamos doar mais 150 CD’s para realizar, através da CNDHC de Cabo Verde, uma ampla distribuição deste material em escolas, bibliotecas, a pesquisadores, etc. Inclusive, propus em uma entrevista a um canal televisivo cabo-verdiano a possibilidade de realizarmos uma parceria com um jornal local para colocar cupons enviando-nos os quais os leitores interessados poderão obter o CD.

Com a viagem que a coordenadora da CNDHC, Vera Duarte, realizará ao Brasil no início de abril estreitaremos um elo entre a instituição que ela dirige e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos do nosso país. Durante a sua viagem, Vera Duarte visitará também o estado de São Paulo, conhecendo a experiência da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos; o Rio Grande do Sul, para entender o programa de Cidades de Direitos Humanos promovido pelo Movimento dos Povos para a Educação em Direitos Humanos e posto em prática em Porto Alegre; e o Ceará, para conhecer a experiência do Observatório do Judiciário.

Além do mais, a coordenadora da CNDHC passará três dias Rio Grande do Norte e estreitará seus laços com a Rede Estadual de Direitos Humanos – RN (através do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular e o jornal Tecido Social) e com o braço desta última para a África, o Núcleo de Direitos Africanos Amílcar Cabral.

Também criaremos um elo com a ONG cabo-verdiana chamada Zé Muniz que está começando a trabalhar a difusão dos Direitos Humanos nas escolas, para uma troca de experiências entre o trabalho deles, o que se está fazendo no Brasil e – mediante uma viagem do editor-chefe de Tecido Social à Itália prevista em maio e junho, que prevê uma passagem por Portugal – tentando estabelecer um laço também com escolas portuguesas.

No que diz respeito a Direitos Humanos e polícia, em Cabo Verde estão iniciando a realizar cursos de capacitação em cidadania para policiais e vamos disponibilizar para os operadores cabo-verdianos de segurança toda a experiência concretizada no Portal Comunitário de Segurança Humana, uma parceria da Dhnet com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça.

Para concluir, a proposição que minha viagem a Cabo Verde em representação da REDH-RN fez foi a da junção de ousadias: a da pequenina Cabo Verde e a de potiguares (brasileiros e nordestinos) no outro lado do Atlântico que, info-conectados, estão construindo uma rede de Direitos Humanos glocal para atingir os cerca de 450.000 habitantes das dez ilhas do arquipélago cabo-verdiano e os 167 municípios do Rio Grande do Norte. Nossas palavras de ordem são: Direitos Humanos para todos os Potiguares! e Direitos Humanos para todos os Cabo-Verdianos! Como escreveu Frei Betto, esta junção de ousadias tenta ser “um elo entre a teoria global e as necessidades locais”, usando toda a criatividade nordestina e africana encima daquela idéia de “intelectual orgânico” de Antonio Gramsci.

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Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 26/02/2005
Código do texto: T5211