O DOER DAS COISAS

Entendo tuas preocupações, ainda mais na idade provecta em que te encontras. Falas de uma convivência matrimonial que na atualidade não é a regra e sim a exceção. Como autor, trabalho com o mundo circunstante e percebo que ele me toma por inteiro, ainda mais por acreditar que a arte copia a vida. Tenho compromisso com o meu tempo de viver e o seu entorno, com o futuro em riste aos olhos e ouvidos. Os meus quase setenta não permitem ousar diferentemente, porque apesar de lidar com a farsa e fantasia, produtoras do clima da literatura poética, a realidade está dentro de mim: algema indissolúvel. A soma destas naturezas e o espelho do dia a dia compõem o rico tapete pelo qual transitamos. Porém, não leves a arte poética tão a sério, peço. Já conseguimos o principal: pensarmos sobre a temática dolorosa das perdas e a ilusão do “ter” no amar, que é sempre conjuntural, porque o amar é fósforo... Parece-me ser esta a principal perda que reclamas, por estares a pouco em estado de viuvez e hígida de esperas, resistindo a estas como os jacarandás à cata do sol do estio primaveril para que todos os anos – milagrosamente – abram-se aos circunstantes a flor e o pólen. Não se pode estar no mundo somente como expectante; as ações e os desejos modelam a estabilidade emocional.

– Do livro O CAPITAL DAS HORAS, 2014.

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