A elite boliviana
Na tarde fria de 7 de julho de 1953, o jovem Ernesto Guevara de la Serna, 25 anos, recém diplomado médico, e seu amigo de infância, Carlos Ferrer Zorrilla, de 24 anos, com formação em ensino Médio, embarcaram na locomotiva da linha General Belgrano, Estação Retiro, em Buenos Aires, numa viagem por países latino-americanos. O sonho de Guevara era chegar ao leprosário da Ilha de Pascua, no Chile, onde seu amigo argentino Alberto Granado atuava como médico, e com o qual havia realizado sua primeira viagem pela América Latina, no ano anterior.
A viagem terminou na estação de La Quiaca, atravessaram a fronteira boliviana, no dia 10, e no povoado de Villazón pegaram um trem para La Paz, e chegaram dia 14. Guevara queria conhecer o Lago Titicaca e a Ilha do Sol, esta, famosa por abrigar ruínas do Império Inca, e depois seguir para o Peru, onde visitaria a histórica Machu Picchu.
Os "collos" eram mestiços quécha, aimara, atacama, omaguara ou diaguita, povos tribais andinos. Nesses dias, vendedoras ambulantes nativas tinham o costume milenar de levar os filhos nas costas e, como usavam saias rodadas sem roupa de baixo, agachavam-se nas ruas, soltavam excrementos e continuavam a jornada normalmente como se nada houvera, um velho costume tribal.
A capital fervia com movimentos revolucionários populares exigindo direitos sociais. Esses grupos milicianos derrubaram o governo, dissolveram as Forças Armadas e exigiram reforma agrária. Os mineiros afiliados à Central Obrera Boliviana (COB) trocaram a pá pelo fuzil, e desfilavam em marchas organizadas pelas ruas, numa demonstração de força, frente a um governo voltado para defender interesses de multinacionais ianques que saqueavam a riqueza do povo humilde e analfabeto.
O mundo latino-americano encontrava-se infestado de ditadores oportunistas. No Peru, o ditador Manuel Odría reinava; Gustavo Rojas Pinilla, na Colômbia; Marcos Pérez Jiménez, na Venezuela; Alfredo Stroessner, no Paraguai; Fulgêncio Batista, em Cuba; Anastásio Somoza, na Nicarágua; Papa Doc, no Haiti; Héctor Trujillo, na República Dominicana; e na Bolívia havia recentemente sido deposto o ditador Hugo Gallivián. Enfim, era um festival de capatazes a serviço de interesses da Casa Branca, que os manobrava facilmente.
No período superior a 30 dias que passou na nação andina, Guevara observou que o Movimento Nacional Revolucionário (MNR) estava fatiado em três lideranças distintas, e não constituía uma unidade de comando. Siles Zuazo, vice-presidente do país, e herói do movimento revolucionário, era de tendência direitista; o presidente Víctor Paz Estenssoro era também de direita; e Juan Lechín Oquendo, farrista e mulherengo, era de esquerda.
Apesar do sistema colonial espanhol haver sido deletado do cenário histórico andino, os senhores da oligarquia dominante continuaram mantendo o mesmo tratamento que outrora era dispensado aos povos originários.
Poucos dias depois, a dupla aventureira pode comprovar esse tratamento infame. Quando tomavam café numa lanchonete da cidade, em uma das mesas do estabelecimento havia uma senhora e filhos assentados em cadeiras, tendo uma "collita" assentada sobre o piso cerâmico da casa comercial. A nativa se alimentava de sobras de alimento que as crianças lançavam ao chão. Enfim, a nativa era tratada como cadela nojenta.
Raimundo Nonato Freitas de Cerqueira
Florianópolis: 2013. Ainda não editado.