Diário de uma conversão
Esse é um fragmento de um livro que estou escrevendo. Vou postando a medida que for escrevendo.
Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes;
E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são;
Para que nenhuma carne se glorie perante ele.
1 Coríntios 1:27-29
15/09/2013
Chego assustada em minha casa. Tudo está estranho e sombrio. Não me lembro de nada, tudo está nebuloso. Em todos os cantos da casa, pessoas se olham, choram, alguns parecem confidenciar algo. Minha casa sempre foi tão vazia, hoje está repleta de pessoas que há tempos eu não via.
Não quero ver ninguém, não enquanto minha memória estiver tão confusa. Olho pra todos os lados buscando uma forma de passar sem ser vista. Não quero ter minhas bochechas apertadas, não quero ouvir como cresci desde a última visita, e nem ouvir críticas a respeito do meu jeito desleixado de me vestir.
Cheguei a conclusão que vai ser impossível entrar sem que aquela gente toda me veja, então coloquei meu fone de ouvidos e entrei. Sem olhar para os lados comecei a subir os degraus. Parece que meu desejo foi atendido, pois não fui interceptada.
A porta do meu quarto está aberta, sinto uma revolta dentro de mim. Todos sabem que meu refúgio é zona proibida naquela casa. Entro com vontade de matar quem está lá. Minha mãe, olha meus cd's em cima da estante. Ia falar com ela, mas ela chorava muito.
Algo estranho estava acontecendo, eu não conseguia entender. Fiquei parada, observando minha mãe, que pega um dos meus cd's favoritos e coloca no player. Cada palavra da música, que agora não consigo mais identificar, parecia uma facada em minha mãe, que chorava copiosamente. Aquilo era demais pra mim.
O quarto do meu irmão também está aberto. Me lembro que antes, esse era meu refúgio. Com ele aprendi tudo que sei sobre música. Agora, olhando pra ele, que ignora minha presença no quarto, me questiono: Por que mudamos tanto? Ele está estático. Parece em outra dimensão. Todos estão assim. Caminho em direção a ele, que tem uma foto na mão. Impossível não chorar. Nem me lembrava dessa foto. Minha primeira vez em um palco. Eu estava com tanto medo, mas olhar pra meu irmão lá em baixo me deu uma coragem sem tamanho. Foi um dia incrível. O dia mais feliz da minha vida.
Mas tudo acabou. Cada um foi viver em seu mundo particular. Nos fechamos em nossos quartos, fizemos dele um refúgio. Mas de que estávamos fugindo? Existia uma barreira entre nós.
Todos estavam estranhos, e eu só queria um abraço. Que alguém me notasse. Corro pro quarto da minha pequena. Minha princesa. Ela é a única que está feliz. Na verdade, ela está com meus primos, distraída. Não quero assusta-la. Está abraçada com o Slash, o ursinho roqueiro. Ela sempre teve livre acesso a tudo. A todas as fortalezas daquela casa. E sempre estava invadindo outros espaços.
Há quanto tempo não observava minha pequena. Ela cresceu tanto. Entro em silêncio pra não dispersar as crianças. Um mural em seu guarda-roupa chama minha atenção. "Família louca", esse era o título do mural. São fotos que nunca vi. Nunca dei atenção pra minha princesa. Fotos do aniversário de 7 anos dela. Ela pediu que eu e meu irmão tocássemos pra ela. Não queria festa, apenas isso. Fizemos um show. Foi muito bom, mas no outro dia, tudo voltou ao normal. As fotos estavam lá, no mural.
No mural da família louca tinha tanta foto, que faltava espaço. Minha mãe com cara de preocupada, fazendo docinhos. Meu pai com cara de tédio ajudando. Saudade do meu pai. Fico um tempo parada, apenas olhando aquele rosto. Não consigo entender porque ele foi embora. Nunca mais me ligou. Eu era a pequena louca dele, será que ele esqueceu?
A foto do meu irmão era a mais linda de todas. Com sua guitarra ele estava vivendo aquele momento. Me lembro que fazia um solo do Joe Satriani olhando pro rostinho da Bela, minha princesa. Ela tinha total devoção a ele. Em cima da foto tinha a legenda, com a letrinha linda dela: Meu príncipe, meu herói. Era isso que ele sempre foi.
Tinha foto da namorada do meu irmão, escrito: Princesa de outro reino. Ri daquilo. Não tinha amizade com ela, na verdade achava ela meio estranha. Mas quem era normal ali?
Minha foto estava cercada com adesivos de coração. Tinha a legenda: Princesa louca, meu exemplo a seguir. Uma foto nossa no piano. Ela vai tocar melhor que eu ainda. Tenho certeza. Ao lado da minha foto, tinha uma foto do Brian, meu ex-namorado, a legenda me trouxe a memória momentos legais com minha família. "O forasteiro". Me lembrei da primeira visita dele aqui em casa. Eu, ainda com 14 anos, morrendo de vergonha. Ele tinha insistido muito, queria a todo custo conhecer minha família. Meus irmãos resolveram zoar o coitado, e não chamavam ele pelo nome, apenas de forasteiro.
-Bela!
Essa voz é totalmente reconhecível. É meu pai. A Bela corre para um abraço. Meu pai a abraça como se nunca mais quisesse solta-la. Me lembrei do meu primeiro dia de aula. Eu, sempre independente, querendo logo estudar, e ele me abraçando, com cara de quem estava deixando pra trás um tesouro. Queria que isso nunca tivesse mudado.
A presença do meu pai, tornou aquele dia muito mais estranho. Fazia mais de dois anos que ele foi embora. Só vinha em casa em caso de urgência. O que o trouxe de volta? Ele nem mesmo olhou para mim. Tentei falar, mas ele não me dava ouvidos. Me ignorou. Aliás, todos ignoravam minha presença ali.
Isso era normal. A aproximadamente um ano, as coisas estavam insustentáveis. Não quis prestar vestibular pra o curso que eles escolheram, então, a guerra começou. Eu me tornei de uma semana pra outra, a inútil, a louca. Queriam me obrigar a fazer psicanálise. Ninguém quis me ouvir, mas reclamavam sempre da minha falta de comunicação.
Começo a me lembrar da noite anterior. Das lágrimas. Da carta. De tudo. Desço correndo as escadas. Vejo pessoas, cada vez mais gente. Minha turma da escola. A galera da banda. Minha família toda reunida. Lágrimas. Abraços. Algumas pessoas não se viam a mais de cinco anos. Entro na sala. Ninguém me nota. Todos estão me olhando. Mas não a mim. A meu corpo, sem vida.
15/11/2012
Hoje o dia promete. Tenho muitas coisas pra fazer. Tenho um show no começo da noite e depois festa na casa da Luiza. Nunca fui muito fã dessas festas, mas o Brian quer ir. Ele é amigo do namorado dela, então, o jeito é escolher uma roupa e acompanhar meu forasteiro.
- Bom dia, princesa, vamos acordar?
Sempre acordo a Bela, minha irmã caçula. Ela me acha uma louca e me trata com orgulho. A única pessoa nessa casa, que ainda dá pra ter um diálogo.
Meu irmão, Gabriel, nunca tem tempo pra nada aqui. Ele está cursando direito e é o orgulho da família. Meu pai liga pra ele toda semana. As vezes sinto uma pontinha de inveja, mas aí vejo o coitado passando horas estudando, então fico apenas com pena.
Desde que ele largou a banda, essa casa anda meio silenciosa. Os amigos dele quase não vem aqui. Ele não toca mais, vive pra ser o orgulho de todos.
Me lembro do discurso dele quando decidiu que a banda acabaria. " Todos temos que ter responsabilidade, e na vida temos que estabelecer prioridades. Minha prioridade agora é outra." Parecia um robô programado pelos meus pais. Eles sufocaram o sonho do meu irmão. Ele deixou isso acontecer. Todos os pedidos pra ficar foram inúteis. Ele precisava ser o orgulho da família. Coisa que nunca vou ser.
Ninguém sabe ainda, mas não vou prestar vestibular. Não quero ser aquilo que meus pais não conseguiram. Minha mãe sempre sonhou em ser psicóloga, e meu pai até tentou ser um bom advogado. Mas teve que sustentar a família, então decidiu que não poderia mais estudar. Eles não percebem que ainda dá tempo? Eu não posso e nem vou viver o sonho deles. No meio do ano que vem, eu e o Brian, vamos embora, estudar música.
Enquanto faço um último ensaio antes do show, a Bela me olha. Prometi pra mim mesma, que não vou deixar ela se transformar, como o Gabriel. Ela tem talento, e vai herdar esse piano quando eu for embora. Me observa como se quisesse pedir algo. E quer.
- Diga princesa, o que quer?
- Daqui a duas semanas é meu aniversário, lembra?
- Claro, como posso esquecer? Ainda me lembro do dia em que você nasceu
(Risos)
- Então, diga o que você quer, porque tenho que sair.
- Quero que vocês toquem pra mim. Não quero festa. Quero que você e o Biel toquem pra mim.
Esse pedido da Bela me deixou em saia justa. Eu e o Gabriel não nos falamos a uma semana. Desde que ele largou a banda. Mas é um pedido da Bela, e vou ter que aceitar.
- Claro princesa, vou falar com ele. Prometo que vai ser um dia especial.
Ver aquele sorriso me deixava toda boba. Já vai fazer sete anos. Como o tempo passa. Por falar em tempo, já é quase hora do show.
16/11/2012
Ontem a noite foi perfeita, tirando é claro a hora que cheguei em casa. Minha mãe me encheu, falando que sou irresponsável. Devo ser mesmo. Tentei avisa-la que chegaria tarde o dia todo, ela simplesmente não teve tempo pra mim. Agora, já são 10:00am, por um milagre o meu irmão ainda está aqui. Acho que é o momento de fazer o pedido, tudo pela Bela.
- Posso entrar?
- Já entrou.
- Da pra falar um pouco.
- Só se for de extrema importância. Estou estudando.
- Preciso que você toque comigo.
- Já disse que não. Tenho outras prioridades, me aposentei.
- Os melhores nunca aposentam. Alguém me ensinou.
- Não quer que eu tenha uma crise de consciência né, Duda?
- Não, só quero que toque comigo no aniversário da Bela.
- Caramba! Não estava me lembrando. Ele me fez esse pedido semana passada. Ensaiamos na semana que vem. Na verdade, nem precisamos disso. Agora me deixa, tenho prova mais tarde.
Impressionante como a Bela consegue tudo. Ainda bem. Foi estranho falar com meu irmão, mas enfim, vou cumprir minha promessa. Daqui a pouco, vou leva-la ao shopping. Preciso comprar umas coisas pra banda, e acho bom que ela cresça nesse meio.
Sair com criança, mesmo que se tenha um objetivo, uma rota pré traçada, sempre vai haver imprevistos. Estamos a uma hora no shopping e não comprei nada do que queria. Já fui em loja de tudo, e ela sempre me vence. Está namorando ursinhos na vitrine.
Enfim, entro em acordo com ela, e chegamos na casa da música. O Paulo é um velho amigo e adora a Bela, aliás, todos adoram. Ele a distrai e eu posso então escolher tudo com calma. Peço pra entregarem na casa do Nando, ele é vocalista da minha banda, e nossos ensaios são sempre na casa dele. Espero não ter esquecido nada.
Chegamos em casa. Minha mãe não fala comigo. Entro pro quarto e me tranco, agora sou eu e o rock apenas. Não escuto nada do mundo lá fora. Batem na porta. É inútil. Estou no meu mundo e não saio mais daqui.
Chegaram ao extremo. Desligaram a energia. Saio de casa, e vou dar voltas no bairro. Não pareço uma menina. Pareço um moleque revoltado, com fones de ouvido e lágrimas nos olhos. São dez e meia da noite. O Brian me liga. Aposto que já ligaram pra ele. Não vou atender. Vou voltar pra casa.
Acabo de falar com o Brian, ele está viajando e estava muito preocupado. Me pediu pra não sair mais assim. Prometi que não sairia mais. Decidi que não vou mais ouvir música aqui. Serei eu e o fone. Vou dormir.
17/11/2012
Ninguém fala comigo. Na mesa do café, apenas a Bela sorria. Eles desligam a energia pra mim não ouvir música e me chamam de infantil. Talvez eu seja mesmo. Vou pra casa do Nando, passar umas músicas. Lá ao menos não vai ter ninguém pra atrapalhar.
O Brian chega hoje, e está bem estranho comigo. Estou com muita saudade, são quatro anos de namoro, sinto que algo de errado estar por acontecer. Mas acho que estou paranoica, não deve ser nada demais, apenas saudade.
As horas passam lentamente, nada me distrai. Estou ansiosa por ver meu namorado. Ele deve voltar com novidades, foi pra preparar tudo antes de encarar as feras aqui, e declarar que vou embora com ele.
Esse feriado prolongado nunca foi tão irritante. Mas o pior de tudo é ter que ir pra escola na segunda. Vou bem em todas as matérias, mas pra mim já deu. O tempo todo as pessoas falando de futuro, de profissão. Não acham que alguém pode viver de música. Quem disse que quero viver de música?
O Brian chegou enfim, mas nada foi como esperávamos. Discutimos por um motivo idiota e estou muito triste. Só quero que o dia termine logo. Estou parecendo um zumbi, com olheiras profundas, de tanto que chorei. As lágrimas não tinham fim, tentei, mas não consegui parar. O telefone toca. Minha mãe atende. Não consigo identificar com quem ela fala, mas parece nervosa.
- Posso dormir com você? Perguntou docemente a minha pequena.
Fiquei abraçada com ela, que mexia no meu cabelo. Assim, consegui esquecer tudo, e dormi.
18/11/2012
Acordo com a minha mãe me chamando. A Bela estava com um sorriso lindo, e ambas me olhavam. Me assustei com o tamanho do buquê de rosas vermelhas. Esfreguei os olhos para ver se não era um sonho, mas não, era real. O cartão dizia: " Perdão por todas as vezes que deixei de dizer o quanto você é especial." Coloquei num vaso, mas não liguei agradecendo. Nos ferimos profundamente na noite anterior. Não foi a primeira vez, e dessa vez quero que tudo se resolva, não dá mais pra empurrar com a barriga, a hora de conversar sério chegou.
Nossa conversa foi muito dura. Ele disse que não dá mais. Que eu devo buscar uma vida melhor, que não tem nada a me oferecer. Sei que há algo de errado, ele não quer me falar. Chorou como criança. Apesar de toda a dor, que me deixava sem chão, pude perceber que algo errado estava acontecendo ali.
Chego em casa, todos me olham. Eu queria sumir, mas parece que o assunto é sério. Meu pai está sentado e nem me olha, os ânimos parecem estar aflorados. Eu não consegui me controlar, as lágrimas já insistiam em cair novamente.
Meu irmão foi o primeiro a falar:
- É importante que ela decida por si mesma o que quer fazer. O ano está acabando.
- Eu sei, mas ela não nos fala nada. Parece não querer nada da vida.
Falavam como se eu não tivesse presente. Não ouvi a voz do meu pai.
Mais uma vez, corri em sentido ao quarto. Ninguém notou. Estavam todos preocupados, debatendo meu futuro. Ninguém se perguntou como eu me sentia em relação a ele. A incerteza e a inconstância dessa fase tão turbulenta, tem me feito não me imaginar em um futuro. Mas ninguém se importa.
A noite foi curta, diante da dor.
19/11/2012
Na escola, tudo do mesmo jeito. Fiquei um horário todo fora da sala. A Jéssica, minha melhor amiga, até tentou me fazer companhia. Mas eu queria mesmo era ficar sozinha.
Ele me esperava na saída. Disse que tinha algo a me dizer. Eu queria muito ouvir, mas o medo era maior ainda.
Nunca vi tantos exames. Ele está doente. Choramos abraçados. Ele me disse que vai ter que ir embora. Que vai cuidar da saúde e que não pode me levar. Que eu preciso me acertar em casa, que ele não pode ir sem que eu fique bem. Senti aquilo como uma despedida maior ainda. Ele pode morrer se ficar. Mas se for, eu quem morro.
Tive que ser forte, que dizer que eu iria ficar bem. Mas menti, nunca vou ficar bem sem ele, que é meu porto seguro.
Em casa, tudo na mesma. Não nos falamos. Apenas meu irmão que trouxe umas músicas que ele quer tocar no aniversário da Bela. Não estou com cabeça pra nada, mas tenho que tentar.
O Brian vai viajar amanhã, mas prometeu que vem pra festa.
20/11/2012
A aula hoje foi muito legal. Apesar da minha tristeza, me diverti um pouco. Aula de inglês, a professora quer organizar um sarau, separou a turma em cinco grupos pra homenagear uma banda internacional, ou mesmo cantor solo. Mas disse que eu e a Jéssica não podemos participar de nenhum grupo, que vamos ajudar apenas na organização, uma vez que temos uma banda. Achei injusto, mas me diverti com a Jéssica, que teve uma crise, nunca vi minha amiga tão revoltada.
Na saída fui com o Nando pra casa do Brian, ele ia sair as duas da tarde. Levei um cd com nossas músicas. Ficamos juntos até a hora que ele foi. Ele vai voltar pro aniversário da Bela. Ouvimos o cd e nos despedimos de um jeito bem carinhoso. Tentei não chorar, mas foi impossível. Quando vi o carro saindo, não vi apenas o Brian indo embora, vi meus sonhos, minhas certezas, meus projetos todos indo embora.
Fiquei ainda um tempo na casa dele. A mãe dele estava tão triste quanto eu. Ela me deixou no quarto dele, fiquei deitada, chorando, lembrando de cada momento, de cada sonho. De todas as vezes que aquele sorriso me acalmou.
Lembro-me de muitas vezes ter visto o crepúsculo com ele, em um campo próximo a cidade. Eu sempre ficava triste, acho o crepúsculo uma cena melancólica. E quando eu ficava embriagada na nostalgia do momento, ele me mostrava o céu, todo estrelado. Sempre dizia, que por mais lindo que seja o momento, ele não é o único. Sempre haverá um momento mais lindo.
Resolvi ir ver o crepúsculo. Fui de bicicleta, refiz sozinha o trajeto que sempre fiz ao lado dele. O Brian sempre foi muito detalhista. Ele admirava o sorriso das crianças. Parei um tempo, um menino muito alegre, dava corda em uma pipa. Aquele momento senti o quão livre ele se sentia.
Cheguei enfim no campo, me deitei na relva, embaixo de uma árvore, que tinha inscrito nossas iniciais, com a data de nosso primeiro encontro ali. Lembrei de toda poesia. Das músicas ao som do violão. Dos sorrisos. Enquanto pensava, percebi que perdi o crepúsculo. O céu já estava estrelado.
Em casa, sem palavra alguma, minha mãe me abraçou. Ficamos ali, por alguns instantes, sem palavras. Ela sabia o tamanho de minha dor. Me lembro do dia que ela sentia o mesmo. Mas o Brian voltaria, não faria como meu pai. Ele voltaria.
21/11/2012
Acordei meio anestesiada com tudo. Não fui a escola. Minha mãe não achou ruim, apenas pediu que eu não me entregasse a tristeza. Resolvi que iria aprender algumas das músicas que meu irmão pediu. Uma delas me fez chorar. Acho que tudo vai me fazer chorar hoje.
Meu irmão chegou e ensaiamos um pouco, mas ele tinha que estudar. Eu não insisti. Parecia estar vegetando.
A melhor hora do dia, foi quando meu celular tocou. O Brian me ligou. Ele já estava instalado lá, e disse que iria fazer mais alguns exames. Tudo indica que não é tão grave como imaginamos. Mas ele ainda precisa de atenção.
Depois que o Brian me ligou, a hora passou rápido. A Bela me fez rir, como sempre. Passei a tarde com ela, ensinei a tarefa e depois um pouco de piano pra ela. Sempre imagino que ela vai ser uma pianista famosa, pois mesmo ainda aprendendo, toca com a alma.
A noite tende a ser sempre longa quando estamos tristes. Mas dessa vez passou bem rápido. Acho que estou perdendo um pouco a noção de tempo. Não sei quantas horas durmo e nem me levanto.
22/11/2012
Tem dias que não há muito o que dizer. A vida vai nos levando, nos tornamos produto de ações alheias. Assim me sinto. Nada parece estar sob meu controle. E só agora percebo que nunca esteve. Sempre vivi aquilo que outras pessoas planejaram. Nunca tive minhas próprias vontades.
Parei hoje, numa aula chata de história (tudo parece mais chato agora), e comecei a esboçar uma nova canção. Sempre faço isso com o restante do pessoal, mas dessa vez a inspiração veio e tive que escrever.
- Pode nos dizer o que pensa a respeito disso, Eduarda?
Me assustei com a pergunta, parecia que eu estava em outra dimensão, e cai de repente.
-Existem coisas que as palavras não explicam. A arte não precisa ser explicada, tem que ser sentida. Cada um dá a vida que sentir a obra. Uma pessoa triste vai enxergar tristeza, uma pessoa feliz, esperança. É ridícula as tentativas de explicar a arte. Arte é inexplicável.
Depois do belo discurso, ao olhar o quadro de Picasso no livro, recebi uma advertência. Minha mãe ficou obviamente furiosa. Não consigo entender, eu apenas dei minha opinião.
Fiquei de castigo, vou ter que lavar a louça do jantar por uma semana.
23/11/2012
Enfim, sexta-feira.
Achei que nunca chegaria. Tenho que tocar numa churrascaria. Mas dessa vez vou tocar violino. Desde que meu pai saiu de casa, tocar violino é meio complicado. Ele adorava e minha mãe fica triste. Eu acho tão lindo, mas a mágoa as vezes domina.
A churrascaria é do Alberto, um amigo do meu irmão.
Na escola, a professora de História veio falar comigo. Disse que soube do que estava acontecendo, desejou sorte ao Brian. Todos me olham como coitadinha. Todos sabiam do nosso desejo de construir uma família, então tenho que suportar tudo isso.
Depois do discurso, ela me liberou. Disse que eu preciso descansar. Achei bom. Passei em casa, não tinha ninguém. Senti um vazio, então resolvi ouvir o conselho de minha mãe, não me entregar a tristeza. Fui até a churrascaria.
O Alberto sempre foi muito sorridente, me recebeu super bem. Estava um pouco ocupado, organizando o evento, mas mesmo assim me deu atenção. Perguntou pelo Gabriel, e me deixou bem animada com o evento.
A churrascaria era linda, um ambiente agradável. Me questionei porque fiquei tanto tempo sem ir lá. Era horário de almoço já, e eu me ofereci pra tocar uma música para os clientes. Toquei duas músicas e fui muito aplaudida. Foi ótimo, porque estava meio enferrujada no violino.
Enfim, a hora do evento. Várias bandas se apresentariam, mas a nossa seria no melhor horário, com maior movimento. Nossa banda é de rock, e variamos muito. Essa noite seria um metal sinfônico. A galera que nos acompanha estava toda lá. Entre eles, o David, ele já foi muito amigo do Brian e se afastaram um do outro sem explicação. Ele me olhava fixamente e isso me constrangia.
Após a apresentação, que foi maravilhosa, advinha quem veio falar comigo. Ele mesmo. O David.
- Não sabia que ainda arriscava no violino.
- Temos que saber de tudo um pouco, nesse meio.
Um silêncio constrangedor.
- Notícias do Brian?
- Está bem, eu acho.
- Você acha? Não teria que ter certeza? Falou em tom irônico.
- Nem ele sabe se está bem, David. Mas qual o seu interesse? Se me lembro não estão se falando.
- Não está errada, mas apesar de tudo que aconteceu, me preocupo com ele.
- Tudo que aconteceu? Quer ser mais claro?
- Não posso. Mas um dia você vai saber.
Saiu, me deixando com uma dúvida cruel.
24/11/2012
A noite anterior foi estranha. Senti vontade de procurar o David e obriga-lo a falar, Mas acho que se alguém tem que me explicar algo, não é ele.
Minha mãe pediu ajuda pra arrumar a casa, pois a namorada do meu irmão passaria o final de semana em casa. Estou totalmente cansada. A Camila é meio estranha, mas meu irmão fica mais feliz quando está com ela, então, suporto ela.
Recebi um convite, pra ir numa igreja com a Josy. Ela estudou comigo ano passado. Também curte rock, e acho ela bem legal. Mas não estou com ânimo pra ouvir o pastor falando, falando e falando. Inventei uma desculpinha. Mas agora estou envergonhada, ela sempre foi muito legal comigo.
Tivemos uma tarde de princesas, com a Camila. Ela está tentando ser legal com todo mundo, conquistar um espaço. Acho que está conseguindo. O dia foi legal e a noite ela veio conversar comigo. Falou sobre várias coisas. Dormiu no meu quarto.
O Brian não me liga a dois dias. Tenho notícias dele, através da mãe. Ele está me evitando, e nem consegue disfarçar. Quero falar com ela, mas decidi que não iria ligar.
25/11/2012
Não sei se sou a única, mas acho o domingo um dia entediante. Acordei mais cedo que todos. Subi na laje de casa, e fiquei olhando a cidade acordar.
A Bela teve febre a noite, e está bem enjoadinha. Preparei um café especial pra ela, com frutinhas cortadas em vários formatos, ela comeu bem pouco. Mas logo vai ficar boa. Acho que é apenas ansiedade. Se não melhorar, a minha mãe vai levá-la ao médico.
Tarde chata, fiquei jogando vídeo game com meu vizinho. Ele tem onze anos e joga muito. Ele não tem vídeo game, e não sei como joga tão bem, é chato perder pra um pirralho. Quando comecei a me divertir, meu companheiro disse que tinha que ir. Tinha ensaio de teatro na igreja que ele frequenta. Sempre gostei de teatro. Me fez prometer que iria, no dia da peça.
Nem sabia que ele ia a igreja. Percebi que sou totalmente desligada com relação aos meus vizinhos. Ele me disse que vai na mesma igreja que a Josy. Amei isso, assim cumpro duas promessas num dia só.
No final da tarde uma mensagem do Brian. Ele dizia estar bem. Apenas isso.
A Camila vai embora amanhã, então caprichamos no jantar. Foi ótimo. Apesar de todas as coisas chatas que acontecem em casa, temos momentos legais.
26/11/2012
Meu irmão me deixou na escola. A Josy estava na entrada. Não estudamos mais na mesma turma. Ela estava animada, conversando com um grupinho dela. Me senti constrangida por ter mentido, eu não ia fazer nada, mas disse que estava ocupada.
A aula foi legal, ao contrário da maioria, acho as aulas de segunda bem legais. Pedi meu irmão pra me buscar, afinal não gostava de andar de ônibus. Ele não veio. Liguei e ele disse que não teria como. Fui embora a pé. Cheguei em casa e ele estava lá, não sei porque não foi.
Entrei pro quarto, e não quis falar com ninguém. Estava cansada, com fome, mas com muita raiva, então coloquei meu fone de ouvido e dormi. A tarde inteira trancada no quarto. Queria que o dia acabasse logo.
Mais uma mensagem do Brian. Dessa vez, parecia querer assunto. Desejou boa noite. Respondi com um simples e seco boa noite. Ele mandou: Qual o problema? Sinto pelas suas letrinhas que não está bem. Achei graça. Narrei o acontecimento. Ele disse que nunca vai me entender.
De uma hora pra outra ele teve que parar de falar. Não questionei. Acho que o namoro está acabando, e é bom que fique uma amizade.
27/11/2012
Não falei com ninguém no café. Peguei uma maçã e fui de bike pra escola. O Gabriel me ligou, pediu pra mim dar um jeito de ir na casa do Alberto, da churrascaria a tarde, porque ele vai estar lá ensaiando. Respondi quase sem voz. Estava chateada com ele e ele simplesmente ignorava isso.
Cheguei quase morta na casa do Alberto. Morrendo de fome, pois depois da aula não fui em casa. Fiquei andando sem rumo, e quando vi já estava tarde. Começamos o ensaio. Eu ia cantar e tocar violino numa música de autoria dele.
Mudei um solo e brigamos. Ele me disse que a música era dele e discutimos na frente do Alberto. Passei mal, estava sem comer nada e minha pressão caiu de uma forma brusca. Quase desmaiei. Meu irmão falou que era charminho, então saí de novo.
Vi que todos me olhavam da porta, todos menos ele.
Fui pro campo em que via o pôr-do-sol com o Brian. Fiquei deitada debaixo da árvore até o dia acabar. Dessa vez não perdi. Sinto um vazio tão grande dentro de mim. Nunca me senti assim.
Cheguei em casa. Tomei um banho demorado. Deixei a água caindo na minha cabeça, senti um alívio. Estava tão fraca que dormi sem mesmo secar meus cabelos.
28/11/2012
Não há diálogo em minha casa. Vivemos um dia de cada vez, onde não importa o que se passava no dia anterior. Mas dessa vez queriam saber.
- Onde você estava ontem? Perguntou minha mãe.
- Na casa da Jéssica. Menti.
Ninguém nunca se importou comigo, e eu não contava que seria pega na mentira.
- Que Jéssica? Porque a sua amiga veio aqui. Então posso deduzir que não está falando dela.
A falsa paciência estava me irritando.
- Tudo bem, não estava na casa da Jéssica. Fui no campo do Brian.
Não me prendi no discurso sobre verdade, compromisso e responsabilidade. Ouvi tudo e quando ela terminou eu sai. Decidi ir mesmo de ônibus pra escola. Meu irmão passou por mim e se ofereceu pra me levar. Não olhei pro lado. Fingi que não era comigo. Natural depois do que ele fez. Ele nem insistiu.
Minha turma está reunindo um grupo pra estudar pro vestibular. Me veio agora a lembrança de que não sei mais o que fazer da minha vida.
Quando contamos uma mentira, a tendência é ter que emendar uma na outra pra dar suporte. Encontrei a Josy, que veio com um sorriso largo me fazer mais um convite. Dessa vez não precisei mentir. Sábado vai ter o aniversário da Bela. Ela disse que tudo bem, mas que estaria devendo a ela uma visita a igreja.
Quarta é sempre um dia louco. Esse lance de ser meio deve ser chato.
Em casa minha mãe sugeriu que eu procurasse um emprego. Meu pai me dá dinheiro todo mês, e recebo pra tocar. Não vejo por que trabalhar, mas disse que ia procurar.
Estava um clima estranho. Um dia nublado e quente. Subi na laje. Sempre faço isso quando minha mãe tá em casa. Ela tem medo de altura, então nunca vai ir lá. Vi a fora que o Pedro, o pirralhp que é meu vizinho chegou me chamando. Minha mãe gritou lá de baixo.
- Fala pirralho! Quer jogar?
- Na verdade não. Vai ter um show de talentos na igreja mês que vem, e eu queria ver se você me ensina a tocar violão. Minha mãe paga.
Arrumei o emprego. Mas na verdade não cobraria dele.
- Claro moleque, pode vim aí na semana que vem. Essa semana não vou ter tempo. Mas venha na semana que vem. Ah! E sábado pro aniversário da Bela. Vai ser a tarde, as quatro.
Passei o resto da tarde montando uma apostila para iniciantes. Uma ocupação será realmente ótimo.
A noite eu estava satisfeita comigo. Minha mãe pediu que eu tocasse uma música pra ela no violino. Fiquei sem entender, mas toquei uma que ela sempre gostou. Ela ficou me olhando, depois cada um foi pro seu mundo. Acho que ela foi chorar.
29/11/2012
A mãe do Brian me procurou. Tinha ótimas notícias. O problema dele não seria necessário uma cirurgia. Ele chega amanhã. Mas volta na segunda. Ele sempre cumpre com o que promete. Estou ansiosa por vê-lo. Tocar aquele rosto.
Novamente o assunto vestibular, na hora do almoço. Disse que iria escolher um curso, mas que ainda não havia me decidido. Todos me olhavam enquanto eu fazia um mini discurso, sobre escolhas e futuros. Ao terminar, recebi aplausos e meu irmão sugeriu artes cênicas.
A tarde fui comprar coisas pra festa. Encomendei o bolo do jeito que ela queria. Apesar do que todos falam, sou bem responsável.
Tive que procurar meu pai. Eu não queria, pois desde a última vez não estávamos falando. Ele não estava. Deixou os cheques preenchidos pra cada um de nós. Três envelopes. Fui ao banco, pois o da Bela era depositado em uma conta, pro futuro dela.
Senti curiosidade em abrir o envelope do meu irmão, mas achei melhor não. Me deu mais dinheiro que a Bela, queria saber se tinha me dado a mais, como tentativa de me comprar. Sempre penso assim.
Já em casa, coloquei tudo em ordem. Meu humor estava ótimo, o Brian vai chegar amanhã.
(continua)