Rubem Alves e o Povo
Rubem Alves e o Povo
“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”. É o meu caso. Muitos pensamentos meus eu guardei em segredo. Por medo.
Albert Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”.
Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre o que me calei: “O povo unido jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo. Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento para a ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negocio. O fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere. A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moises, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse a adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moises ficou tão furioso que quebrou as tabuas com os Dez Mandamentos.
(...)
O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras.
As mentiras são doces, a verdade é amarga.
Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para leões, se transformaram em donos do circo.
O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praça pública.
Reinhold Niebuhr, no seu livro “O Homem Moral e a Sociedade Imoral”, observa que os indivíduos, isolados, tem consciência. São seres morais. Sentem-se responsáveis por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de por fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais.
Mas o povo não é moral – é uma prostituta que se vende a preço baixo.
Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade.
É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia.
Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão.
Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente indivíduos pensam.Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobra a qual os espertos trabalham.
Nem Freud, nem Neitsche nem Jesus Cristo confiavam no povo.
Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a Revolução Cultural, na China de Mao-Tse- Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.
O nazismo era um movimento popular.
O povo alemão amava o Fuhrer.
“O povo unido jamais será vencido”.
Tenho vários gostos que não são populares.
Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos.
Mas que posso fazer?
Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silencio.
Não gosto de churrasco, de rock, de musica sertaneja e futebol.
Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de “boca de forno”, à semelhança do que aconteceu na China.
O povo que amo não é uma realidade, e uma esperança.