O último cristal
A Palavra de Deus apresenta o homem como um ser composto de corpo, alma e espírito; tendo cada aspecto, suas peculiaridades.
Quanto ao elemento físico, não carece maiores definições sobre o que é, nem, quais suas necessidades. Todos as conhecem e delas cuidam sem maiores estímulos que os que o próprio corpo oferece.
As carências espirituais são mais complexas; e nem sempre são admitidas, pois, fazê-lo fere o orgulho humano. Então, mesmo sabendo, no fundo, que precisam de Deus, as pessoas camuflam-se em subterfúgios para negarem que estão sofrendo por consequência dos próprios erros. Se possível diluir a culpa, ou, quiçá, dela fugir.
Quero me ater, contudo, às demandas da alma, nesse breve escrito. Ela foi criada num estado intermediário; o propósito original era que regesse o corpo, sendo serviçal do espírito. Por ocasião da queda, porém, o espírito do homem morreu e a alma desviada assumiu o controle; com pretensa autonomia em relação ao Criador, e explícita escravidão aos ditames do inimigo, na vivência servil dos apetites do corpo.
Esse é simples o meio de expressão dela; por isso a Escritura fala sempre em salvação da alma, nunca do corpo. Para um retorno à posição original, a salvação, duas coisas são indispensáveis: Primeira: A restauração da comunhão com Deus mediante o devido resgate; isso, Cristo já fez. Segunda: O abandono da rebelião e completa submissão a Deus, o que nem sempre o homem faz.
É que a alma não quer abdicar de seu trono enganoso; mas, negar a si mesmo é indispensável para o homem espiritual nascer de novo. Nesse caso, a alma salva voltaria ao seu lugar próprio, e o espírito regenerado ao comando de um viver submisso ao Senhor.
Tem a alma, contudo, apelos lícitos, dentro dos parâmetros sadios. Carências afetivas, relacionais, estéticas; como os dons artísticos, apreciação do belo, que fazem parte do pleno ser, de um humano qualquer.
Muitos profetas era também poetas, (Davi, Salomão, Agur) a arte engajada, não pela arte em si, mas como veículo de transportar valores pode muito na esfera prática, além da estética; a forma pode laborar pela beleza; o teor, pelo útil, valioso, o bom.
Muitas almas, porém, permanecem rudes como terra jamais cultivada, endurecidas, sem padrões de beleza interior. O célebre escritor francês, Saint-Exuperry (autor de O Pequeno Príncipe) viu homens assim, sem alma; e em seu livro “A Terra dos Homens” denunciou-os dessa forma:
“… ninguém fez com que te evadisses e não és responsável por isso. Construíste tua paz tapando com cimento, como fazem as térmitas, (cupins) todas as saídas para a luz. Ficaste enroscado em tua segurança burguesa, em tuas rotinas, nos ritos sufocantes de tua vida provinciana; ergueste essa humilde proteção contra os ventos, as marés e as estrelas.
Não queres te inquietar com os grandes problemas e fizestes um grande esforço para esquecer a tua condição de homem. Não és o habitante de um planeta errante e não lanças perguntas sem solução: és um pequeno-burguês de Toulouse.
Ninguém te sacudiu pelos ombros quando ainda era tempo. Agora, a argila de que és feito já secou, endureceu; e nada mais poderá despertar em ti, o músico adormecido, o poeta, ou o astrônomo que talvez te habitassem…
E há muitos homens assim, dormindo sem que ninguém os desperte. Hoje, apenas uma máquina de cavar e de martelar. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado; por que estranha máquina de entortar homens?”
O descuido com os anelos legítimos da alma faz isso. A brutalização do ser, o endurecimento estético-psicológico e indolente consumo de lixo onde deveria habitar a arte veraz.
Quem tiver estômago aprecia as “criações artísticas” da moda onde, os anseios estéticos são ludibriados por interesses mercantis, e a verdadeira veia é furtada; em seu lugar desfilam meros simulacros. Quanta pornografia se vê, travestida de arte? Quantas músicas ralés, com letras chulas temos que suportar passivamente? Parece a arte popular moderna, uma Branca de Neve adormecida, enquanto garimpam os anões.
Como aqueles encontravam prata, os anões morais de hoje, enriquecem nas minas de almas pobres, endurecidas; as quais, antes que ser ampliadas são embriagadas; as máquinas os entortam com engrenagens assim.
Claro que Deus é um Artista, o Maior de todos; basta olharmos a criação para vermos! Povoou a terra de belezas naturais, e legou aos homens dons preciosos, música, poesia, para que possamos apreciar o belo, (quiçá ampliá-lo) em suas multiformes faces.
Então, quando a voz de um Luciano Pavarotti rompeu o último cristal, certamente o Senhor já estava provendo novos talentos; gente que cultue a verdadeira arte, para amenizar um pouco, a rude eficácia da “máquina de entortar homens…”