Como consegui a minha vida de volta
Sempre que atinjo uma marca considerável de textos postados no Recanto das Letras - este é o meu 1.100º texto - eu reedito este texto, que é um convite para ler a história de um homem que voltou à própria vida. E para que todos saibam que sempre é possível recomeçar, qualquer que seja o tamanho e o tipo de sarjeta em que alguém tenha caído. Não fosse assim, eu não seria hoje o professor Antonio Maria, poeta, contista e cronista do Recanto das Letras.
A minha história começa em 1964, aos 20 anos, no Rio de Janeiro. Bancário, inteligente e de boa aparência, eu era, entretanto, um rapaz introvertido, tímido e inseguro, e, um dia, aceitei o infeliz conselho de um colega de serviço para fazer uso de dexamil, uma poderosa anfetamina que causava uma extraordinária sensação de alegria e de bem-estar ao usuário. Ora, provavelmente predisposto geneticamente à dependência, eu fui progressivamente me viciando, passando de um ou dois comprimidos diários para dez e, por fim, três anos depois, o tubo inteiro, cerca de vinte e cinco comprimidos por dia! Quando caí na dependência total da anfetamina em 1967, eu estava casado há apenas dois anos, com um filho de um ano, e tornei-me semilouco, tinha delírios de grandeza, estranhas fantasias, alimentava-me pouco e dormia quase nada. Sou um homem de 1,74 m, peso 73 kg, mas, nessa época, cheguei a pesar 50 quilos! Como era de se esperar, o casamento ficou abalado pelos transtornos causados pela minha dependência química e entrou em crise.
Tendo sido aprovado em concurso público para o Banco do Brasil e designado para servir inicialmente numa cidade do interior do Maranhão, acreditei que o meu casamento ainda pudesse ser salvo, mas a minha jovem esposa recusou-se a se reconciliar comigo e a acompanhar-me na volta ao meu estado natal. Voltei sozinho, pois, para o Maranhão, ingressei no BB e reiniciei a carreira bancária, mas infelizmente num precário estado emocional de dependente químico.
Como as farmácias interioranas, nesse tempo, não comercializavam substâncias psicoativas, substituí as “bolinhas” por uma droga lícita e acessível a todos: o álcool. Logo me tornei um fiel súdito de Baco. Enquanto a carreira bancária se complicava, o alcoolismo progredia. Já em 1969 tive duas crises de delirium tremens. Tentei as fugas geográficas: transferências para outras cidades do interior do Maranhão e para outras capitais, como Belém do Pará e Fortaleza. Nesta, em 1973, recebi a maior bênção de toda a minha vida: a mensagem de Alcoólicos Anônimos.
Embora eu fosse sincero e honesto na minha disposição de abandonar a bebida, o meu grande descontrole emocional logo se revelou o maior empecilho para a manutenção de uma sobriedade definitiva. Ficava sóbrio alguns meses, mas, sufocado pela ansiedade e depressão, voltava à garrafa. Então, a carreira bancária, tanto quanto a minha vida social e emocional, oscilou em altos e baixos, mais baixos do que altos, durante quase 10 anos. Com o exercício profissional complicado no Banco do Brasil devido à incontinência de conduta que o meu alcoolismo acarretava, ingressei por concurso no BASA – onde a minha carreira também ficou prejudicada pelo mesmo motivo – e, finalmente, sempre por concurso, ingressei em banco oficial estadual em São Luís do Maranhão.
Contudo, a partir de 1975, consegui manter uma significativa sobriedade contínua, através do Programa de Recuperação de AA. Casei-me pela segunda vez, passei no Vestibular para a Faculdade de Letras, vieram dois filhos e, em 1978, eu já era gerente de agência, tinha carro, boa casa, invejável situação social e financeira. Os dias negros tinham ficado definitivamente para trás? Infelizmente, não...
Estava com três anos de sobriedade contínua em AA quando recaí. Acometido de crises de pânico enquanto dirigia, tentei resolver o problema com comprimidos de diazepan, exagerei na posologia, dopei-me e, então, voltei à minha desgraça engarrafada. Comecei a faltar muito na agência de onde era gerente e me destituíram do cargo. Depois, por várias vezes, estive embriagado no recinto do banco, protagonizando cenas lamentáveis e fiquei sob a ameaça de demissão. Para evitá-la, submeti-me à Perícia Médica do INSS, fiquei em gozo de Auxlio-Doença por dois anos e, finalmente, fui aposentado por invalidez da carreira bancária. Diagnóstico: Psicose Alcoólica. Por estranha e lamentável coincidência do destino, entre os deploráveis acontecimentos que se sucederam a essa recaída, a minha esposa, apaixonada por outro homem, resolveu deixar-me. E eu fiquei só, bebendo alucinadamente, e com a grave incumbência de cuidar de duas crianças pequenas! Eu, que mal podia cuidar de mim!...
E, então, após a decadência da carreira bancária, veio a decadência financeira, social e moral, mas ela foi quase inacreditável: de universitário e gerente de banco, em 1978, com confortável casa e carro, vi-me em 1981, com dois filhos pequenos, morando em zona rural, num casebre de palha, sem luz elétrica, sem água encanada, desprezado e ridicularizado por parentes e amigos! Em certas ocasiões, sem uma mulher ao meu lado e sem recursos para contratar uma empregada doméstica, eu cozinhava, lavava e passava as nossas roupas! Nas raras vezes em que recorri a parentes em busca de auxílio só recebi desprezo e indiferença. Mas eu conseguia, sim – e isso, com certeza, pela misericórdia de Deus e pela minha própria natureza, sempre muito apegado aos que me são caros – cuidar dos meus dois filhos, nunca lhes faltando casa, comida, roupa e escola.
Nunca, entretanto, perdi o contato com o A.A. nem desistia do meu propósito de recuperação, pois mantinha sempre um sonho: levar uma vida normal. Caía e reingressava, caía e reingressava... Mas, a partir de 1986, voltei a experimentar bons períodos de sobriedade contínua e uma relativa prosperidade econômica, já que, retornando à Faculdade de Letras, da UFMA, me graduei em 1988, e fui aprovado em dois concursos públicos para professor da rede pública estadual. Mas, nessa etapa, recrudesceram a minha depressão e ansiedade, e adquiri uma nova dependência: os remédios controlados. O resultado disso foi quase trágico: passava um ou dois anos sem beber, e, quando menos se esperava, atacava-me a depressão, ansiedade ou medo. Encurralado, procurava desesperadamente o remédio controlado, usava-o, exagerava nas doses, e dentro de mais ou menos dois dias voltava à garrafa. E bebia por quinze, vinte dias seguidos, quase sem me alimentar, dormir normalmente ou me assear.
E nesses períodos de recaídas alcoólicas acontecia tudo: internações, acidentes, problemas de toda ordem. E justamente aí a dependência às substâncias entorpecentes se manifestava de maneira extremamente absurda e degradante: bebi álcool puro com água, desodorante, cheirei cola de sapateiro, éter, gasolina, roubei farmácias para obter o remédio controlado, roubei dinheiro, falsifiquei, vendi roupas do corpo e objetos pessoais para beber. Amanhecia bêbado, trêmulo, às cinco da manhã, e corria desesperadamente para o primeiro botequim aberto; se não tinha dinheiro, suplicava pelo copo de cachaça, tomava-o com as duas mãos, vomitava (pois o organismo, desidratado e enfraquecido, repelia o álcool), tomava outro gole e tornava a vomitar, tomava o terceiro e, enfim, esse ficava no organismo. E, principalmente nessas ocasiões, não era capaz de parar de beber sozinho; tinha que me internar em hospital psiquiátrico para cortar o ciclo das bebedeiras contínuas, pois, caso contrário, ficaria louco ou seria vítima de um coma alcoólico. E isso tudo acontecia com um bancário aposentado, um professor de nível superior!
Mas continuei buscando obstinadamente a minha recuperação, apesar de contabilizar, em 1999, 22 internações psiquiátricas, carreira bancária melancólica e precocemente encerrada, carreira do Magistério cheia de altos e baixos, vários acidentes quase fatais e muitas cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais. Mas, os períodos de sobriedade em AA, embora descontínuos, possibilitaram-me, apesar dos pesares, criar e educar os meus dois filhos. Cresceram, se formaram, casaram. Com mais disciplina, fé e coragem, fiz ,em 1999, o meu último reingresso em AA e me tornei, a partir daí, definitivamente sóbrio. Vou contar-lhes como foi esse reingresso.
No início de outubro de 1999 eu recaí pesadamente na bebida. Bebi durante doze dias consecutivos, mas sem sair de casa. Mandava a empregada buscar a bebida na quitanda onde tinha crédito, bebia, ouvia músicas em alto e bom som, perturbando vizinhos - a velha rotina das minhas recaídas alcoólicas! Não havia companheiros de A.A. por perto e o Grupo que eu frequentava ficava a 30 minutos de ônibus da minha casa, de modo que, quando consegui parar, ninguém no A.A. houvera sabido dessa minha recaída. Mas, conhecedor – tanto pela experiência pessoal quanto pelo estudo da Literatura disponível em A.A. – da problemática do alcoolismo, eu não me enganava: sabia que tinha de voltar correndo para o Programa de Recuperação de A.A. Caso contrário, seria acometido de outras crises de dipsomania, uma das quais poderia me render consequências fatais ou danos físicos e mentais irreversíveis, pois, como bebia pesadamente por vários dias consecutivos, havia sempre me rondando nessas fases a ameaça de um coma alcoólico ou delirium tremens.
Deprimido, cheio de vergonha e arrependimento, após 3 dias sem beber, fui à reunião de A.A., disposto a confessar a minha recaída e a fazer o meu reingresso. Precisava muito disso. A compulsão pelo primeiro gole já começava a ficar premente, enquanto a síndrome da abstinência alcoólica me acarretava um desconfortável estado de nervosismo intenso, tremores e suores frios. Quando cheguei à sala do Grupo descobri que a reunião daquela noite não seria uma reunião comum de terapia, mas uma reunião de serviço. Em reuniões desse tipo não há depoimentos, ingressos ou reingressos. Levantei-me e saí. Esperaria a próxima reunião de terapia para reingressar. Mas, ao caminhar para o ônibus, um pensamento me fez parar. Com certeza, quando chegasse a casa iria beber, pois estava compulsivo demais! E se morresse ou enlouquecesse naquela próxima bebedeira? Voltei para o Grupo; a reunião estava em pleno andamento, coordenada pelo meu velho companheiro Nélio S.
Eu falei, trêmulo, mas decidido:
- Companheiro, sei que esta é uma reunião de serviço, mas quero comunicar que bebi e que preciso recomeçar o meu Programa. Se não puder fazer meu reingresso hoje, entenderei perfeitamente.
Nélio tomou um susto, mas recobrou-se e falou:
- O A.A. foi criado para ajudar doentes alcoólicos. É essa a nossa prioridade. Peço permissão à consciência deste Grupo para transformar esta reunião de serviço numa reunião de terapia.
Todos concordaram, mas quando a reunião de terapia começou e o Nélio me chamou para dar o meu depoimento e fazer o meu reingresso, eu já estava chorando como um menino... E nem era pela gravidade do momento: um reingresso em A.A. é sempre uma admissão pública de um fracasso da vontade de permanecer sóbrio - que geralmente não é bem recebida pela consciência coletiva do Grupo. Eu chorava copiosamente, porque sentia que algo se estava quebrando definitivamente dentro de mim, naquela noite, e que, com certeza, eu jamais voltaria à garrafa! Era o dia 26 de outubro de 1999 e eu estou, portanto, há doze anos sem ingerir uma única gotinha de álcool.
De 1967 - quando a dependência às anfetaminas destruiu o meu primeiro casamento, no Rio de Janeiro, - a 1999 - ano da minha completa e definitiva recuperação - se passaram 32 anos de uma vida envolvida por um incrível torvelinho social, moral e emocional, na verdade, um longo pesadelo! Mas logo tratei de recuperar o meu futuro, já que o passado não tinha mais conserto. Em 2004, conheci Fernanda, uma pedagoga e artista plástica, de alma nobre e coração amoroso, e embora fosse 28 anos mais nova do que eu, não hesitei em me casar pela terceira vez. Fiz certo; nunca uma mulher fez tanta diferença na minha vida quanto Fernanda, que resgatou a minha fé no amor e no casamento, e me deu, inclusive, uma nova princesinha, a Samira (que, em árabe, significa "Companheira Inseparável"), princesinha muito peralta e saltitante... Em 2006, eu comecei a resgatar a minha vocação literária - que despontou já na adolescência - escrevendo poesias, contos, crônicas e outros gêneros, em sites literários da Internet, tendo começado por este, o meu caríssimo Recanto das Letras. Despertado o autor literário que adormecia dentro de mim, ousei mais e hoje já sou autor de três livros impressos: a minha autobiografia, um livro de contos e outro, de poesias.
Jamais esqueço, entretanto, de que, para emergir do obscuro fundo de poço onde caí por muitos e preciosos anos da minha vida, eu precisei da ajuda de muitas pessoas, especialmente os companheiros de A.A., alguns amigos sempre fiéis (que foram poucos) e os desconhecidos que me deram a mão, solidários com o meu sofrimento. Por isso, supondo que a minha experiência de vida possa ser de grande valia para os que estão nas sarjetas da vida, derrubados pela dependência química - tão desconcertante quanto dolorosa doença, que é física, mental e espiritual - eu a repasso, sempre que me é possível, em palestras em escolas, instituições de saúde ou religiosas, ou em textos de quaisquer veículos de comunicação, em caráter absolutamente voluntário e gratuito. Tenho o maior interesse que todos saibam que é perfeitamente possível a libertação de qualquer dependência química - mesmo a mais devastadora, como foi a minha - sem gastar nenhum centavo ou aderir a qualquer seita ou religião, bastando seguir o seguinte roteiro: a) Admitir sem reservas que é um dependente químico; b) Desejar, honesta e sinceramente, recuperar-se dessa dependência; c) Aderir a um Programa de Tratamento, e d) Jamais Desistir!
Por fim, fico pensando no erro que alguns cometem, ao dizer que não existe felicidade na vida; quem assim diz, com certeza não sabe o que é infelicidade. Quem a tem e não sai dela, é um infeliz: quem foi infeliz, mas deixou de sê-lo, em nenhuma condição de vida pode ser classificado senão a de feliz.
Não duvidem, pois, que sou um homem feliz...
INFORMAÇÕES ÚTEIS:
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
“Alcoólicos Anônimos é uma Irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver o seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de parar de beber. Para ser membro de AA não há necessidade de pagar taxas nem mensalidades, somos auto-suficientes, graças às nossas próprias contribuições. AA não está ligado a nenhuma seita ou religião, partido político, nenhuma organização ou instituição, não deseja entrar em qualquer controvérsia, não apóia nem combate quaisquer causas. Nosso propósito primordial é mantermo-nos sóbrios e ajudar outros a alcançarem a sobriedade”
(Preâmbulo oficial de AA, Alcoholics Anonymous World Services, Inc.)
Alcoólicos Anônimos nasceu em 1935, em Akron, Ohio, Estados Unidos, quando Bill W., um homem de negócios de Nova Yorque, tendo ficado sóbrio pela primeira vez, em anos, convenceu um médico alcoólico, Dr. Bob, a parar de beber. Trabalhando juntos, o homem de negócios e o médico observaram que o seu grau de encorajamento aumentava à proporção que ajudavam outros alcoólicos a abandonarem a bebida.
Foi à luz desse princípio espiritual que cresceu a Irmandade dos Alcoólicos Anônimos, expandindo-se pelo mundo inteiro.
Em 05/09/1947, Harold W., um americano que ingressara no AA e que viera fixar residência no Brasil, fundou, junto com outros alcoólicos, o primeiro Grupo de AA do Brasil – o Grupo Central do Rio de Janeiro.
Atualmente o AA conta com mais de 90 mil Grupos em 146 países. No Brasil, estima-se que são mais de seis mil Grupos.
O PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO DE AA
O Programa de Recuperação do Alcoolismo, sugerido pelo AA, se baseia na Experiência dos seus membros, na Medicina e na Religião. O alcoolismo é visto como uma doença progressiva e incurável, mas que pode ser detida pela abstenção total do álcool sob todas as suas formas e é sugerido ao participante um programa de recuperação, baseado em doze princípios espirituais, os Doze Passos
Não se sugere nenhuma forma de conversão religiosa aos participantes, nem se prescrevem medicamentos. Trata-se de um método de tratamento do alcoolismo no qual seus participantes funcionam como terapeutas uns para os outros, compartilhando entre si as suas experiências no sofrimento e na recuperação do alcoolismo, experiências essas que se revelam altamente proveitosas para aqueles que desejam abandonar a bebida.
Todos os membros de AA são alcoólicos que hoje estão reaprendendo a viver sem o álcool. Sem sermões nem conselhos, acolhem os recém-chegados, oferecendo-lhes toda a ajuda disponível em AA. Este é, em linhas gerais, o Programa de Recuperação do Alcoolismo, de AA, que é simples, mas surpreendente: mais da metade dos doentes alcoólicos que procuram o AA param de beber imediatamente.
ONDE PROCURAR AJUDA:
Alcoólicos Anônimos no Brasil
Av. Senador Queiroz, 101, 2º and. Cj. 205
São Paulo – SP
Cx. Postal 3180 – CEP 01060-970
Tel: (011) 3229-3611
http://www.alcoolicosanonimos.org.br
Sempre que atinjo uma marca considerável de textos postados no Recanto das Letras - este é o meu 1.100º texto - eu reedito este texto, que é um convite para ler a história de um homem que voltou à própria vida. E para que todos saibam que sempre é possível recomeçar, qualquer que seja o tamanho e o tipo de sarjeta em que alguém tenha caído. Não fosse assim, eu não seria hoje o professor Antonio Maria, poeta, contista e cronista do Recanto das Letras.
A minha história começa em 1964, aos 20 anos, no Rio de Janeiro. Bancário, inteligente e de boa aparência, eu era, entretanto, um rapaz introvertido, tímido e inseguro, e, um dia, aceitei o infeliz conselho de um colega de serviço para fazer uso de dexamil, uma poderosa anfetamina que causava uma extraordinária sensação de alegria e de bem-estar ao usuário. Ora, provavelmente predisposto geneticamente à dependência, eu fui progressivamente me viciando, passando de um ou dois comprimidos diários para dez e, por fim, três anos depois, o tubo inteiro, cerca de vinte e cinco comprimidos por dia! Quando caí na dependência total da anfetamina em 1967, eu estava casado há apenas dois anos, com um filho de um ano, e tornei-me semilouco, tinha delírios de grandeza, estranhas fantasias, alimentava-me pouco e dormia quase nada. Sou um homem de 1,74 m, peso 73 kg, mas, nessa época, cheguei a pesar 50 quilos! Como era de se esperar, o casamento ficou abalado pelos transtornos causados pela minha dependência química e entrou em crise.
Tendo sido aprovado em concurso público para o Banco do Brasil e designado para servir inicialmente numa cidade do interior do Maranhão, acreditei que o meu casamento ainda pudesse ser salvo, mas a minha jovem esposa recusou-se a se reconciliar comigo e a acompanhar-me na volta ao meu estado natal. Voltei sozinho, pois, para o Maranhão, ingressei no BB e reiniciei a carreira bancária, mas infelizmente num precário estado emocional de dependente químico.
Como as farmácias interioranas, nesse tempo, não comercializavam substâncias psicoativas, substituí as “bolinhas” por uma droga lícita e acessível a todos: o álcool. Logo me tornei um fiel súdito de Baco. Enquanto a carreira bancária se complicava, o alcoolismo progredia. Já em 1969 tive duas crises de delirium tremens. Tentei as fugas geográficas: transferências para outras cidades do interior do Maranhão e para outras capitais, como Belém do Pará e Fortaleza. Nesta, em 1973, recebi a maior bênção de toda a minha vida: a mensagem de Alcoólicos Anônimos.
Embora eu fosse sincero e honesto na minha disposição de abandonar a bebida, o meu grande descontrole emocional logo se revelou o maior empecilho para a manutenção de uma sobriedade definitiva. Ficava sóbrio alguns meses, mas, sufocado pela ansiedade e depressão, voltava à garrafa. Então, a carreira bancária, tanto quanto a minha vida social e emocional, oscilou em altos e baixos, mais baixos do que altos, durante quase 10 anos. Com o exercício profissional complicado no Banco do Brasil devido à incontinência de conduta que o meu alcoolismo acarretava, ingressei por concurso no BASA – onde a minha carreira também ficou prejudicada pelo mesmo motivo – e, finalmente, sempre por concurso, ingressei em banco oficial estadual em São Luís do Maranhão.
Contudo, a partir de 1975, consegui manter uma significativa sobriedade contínua, através do Programa de Recuperação de AA. Casei-me pela segunda vez, passei no Vestibular para a Faculdade de Letras, vieram dois filhos e, em 1978, eu já era gerente de agência, tinha carro, boa casa, invejável situação social e financeira. Os dias negros tinham ficado definitivamente para trás? Infelizmente, não...
Estava com três anos de sobriedade contínua em AA quando recaí. Acometido de crises de pânico enquanto dirigia, tentei resolver o problema com comprimidos de diazepan, exagerei na posologia, dopei-me e, então, voltei à minha desgraça engarrafada. Comecei a faltar muito na agência de onde era gerente e me destituíram do cargo. Depois, por várias vezes, estive embriagado no recinto do banco, protagonizando cenas lamentáveis e fiquei sob a ameaça de demissão. Para evitá-la, submeti-me à Perícia Médica do INSS, fiquei em gozo de Auxlio-Doença por dois anos e, finalmente, fui aposentado por invalidez da carreira bancária. Diagnóstico: Psicose Alcoólica. Por estranha e lamentável coincidência do destino, entre os deploráveis acontecimentos que se sucederam a essa recaída, a minha esposa, apaixonada por outro homem, resolveu deixar-me. E eu fiquei só, bebendo alucinadamente, e com a grave incumbência de cuidar de duas crianças pequenas! Eu, que mal podia cuidar de mim!...
E, então, após a decadência da carreira bancária, veio a decadência financeira, social e moral, mas ela foi quase inacreditável: de universitário e gerente de banco, em 1978, com confortável casa e carro, vi-me em 1981, com dois filhos pequenos, morando em zona rural, num casebre de palha, sem luz elétrica, sem água encanada, desprezado e ridicularizado por parentes e amigos! Em certas ocasiões, sem uma mulher ao meu lado e sem recursos para contratar uma empregada doméstica, eu cozinhava, lavava e passava as nossas roupas! Nas raras vezes em que recorri a parentes em busca de auxílio só recebi desprezo e indiferença. Mas eu conseguia, sim – e isso, com certeza, pela misericórdia de Deus e pela minha própria natureza, sempre muito apegado aos que me são caros – cuidar dos meus dois filhos, nunca lhes faltando casa, comida, roupa e escola.
Nunca, entretanto, perdi o contato com o A.A. nem desistia do meu propósito de recuperação, pois mantinha sempre um sonho: levar uma vida normal. Caía e reingressava, caía e reingressava... Mas, a partir de 1986, voltei a experimentar bons períodos de sobriedade contínua e uma relativa prosperidade econômica, já que, retornando à Faculdade de Letras, da UFMA, me graduei em 1988, e fui aprovado em dois concursos públicos para professor da rede pública estadual. Mas, nessa etapa, recrudesceram a minha depressão e ansiedade, e adquiri uma nova dependência: os remédios controlados. O resultado disso foi quase trágico: passava um ou dois anos sem beber, e, quando menos se esperava, atacava-me a depressão, ansiedade ou medo. Encurralado, procurava desesperadamente o remédio controlado, usava-o, exagerava nas doses, e dentro de mais ou menos dois dias voltava à garrafa. E bebia por quinze, vinte dias seguidos, quase sem me alimentar, dormir normalmente ou me assear.
E nesses períodos de recaídas alcoólicas acontecia tudo: internações, acidentes, problemas de toda ordem. E justamente aí a dependência às substâncias entorpecentes se manifestava de maneira extremamente absurda e degradante: bebi álcool puro com água, desodorante, cheirei cola de sapateiro, éter, gasolina, roubei farmácias para obter o remédio controlado, roubei dinheiro, falsifiquei, vendi roupas do corpo e objetos pessoais para beber. Amanhecia bêbado, trêmulo, às cinco da manhã, e corria desesperadamente para o primeiro botequim aberto; se não tinha dinheiro, suplicava pelo copo de cachaça, tomava-o com as duas mãos, vomitava (pois o organismo, desidratado e enfraquecido, repelia o álcool), tomava outro gole e tornava a vomitar, tomava o terceiro e, enfim, esse ficava no organismo. E, principalmente nessas ocasiões, não era capaz de parar de beber sozinho; tinha que me internar em hospital psiquiátrico para cortar o ciclo das bebedeiras contínuas, pois, caso contrário, ficaria louco ou seria vítima de um coma alcoólico. E isso tudo acontecia com um bancário aposentado, um professor de nível superior!
Mas continuei buscando obstinadamente a minha recuperação, apesar de contabilizar, em 1999, 22 internações psiquiátricas, carreira bancária melancólica e precocemente encerrada, carreira do Magistério cheia de altos e baixos, vários acidentes quase fatais e muitas cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais. Mas, os períodos de sobriedade em AA, embora descontínuos, possibilitaram-me, apesar dos pesares, criar e educar os meus dois filhos. Cresceram, se formaram, casaram. Com mais disciplina, fé e coragem, fiz ,em 1999, o meu último reingresso em AA e me tornei, a partir daí, definitivamente sóbrio. Vou contar-lhes como foi esse reingresso.
No início de outubro de 1999 eu recaí pesadamente na bebida. Bebi durante doze dias consecutivos, mas sem sair de casa. Mandava a empregada buscar a bebida na quitanda onde tinha crédito, bebia, ouvia músicas em alto e bom som, perturbando vizinhos - a velha rotina das minhas recaídas alcoólicas! Não havia companheiros de A.A. por perto e o Grupo que eu frequentava ficava a 30 minutos de ônibus da minha casa, de modo que, quando consegui parar, ninguém no A.A. houvera sabido dessa minha recaída. Mas, conhecedor – tanto pela experiência pessoal quanto pelo estudo da Literatura disponível em A.A. – da problemática do alcoolismo, eu não me enganava: sabia que tinha de voltar correndo para o Programa de Recuperação de A.A. Caso contrário, seria acometido de outras crises de dipsomania, uma das quais poderia me render consequências fatais ou danos físicos e mentais irreversíveis, pois, como bebia pesadamente por vários dias consecutivos, havia sempre me rondando nessas fases a ameaça de um coma alcoólico ou delirium tremens.
Deprimido, cheio de vergonha e arrependimento, após 3 dias sem beber, fui à reunião de A.A., disposto a confessar a minha recaída e a fazer o meu reingresso. Precisava muito disso. A compulsão pelo primeiro gole já começava a ficar premente, enquanto a síndrome da abstinência alcoólica me acarretava um desconfortável estado de nervosismo intenso, tremores e suores frios. Quando cheguei à sala do Grupo descobri que a reunião daquela noite não seria uma reunião comum de terapia, mas uma reunião de serviço. Em reuniões desse tipo não há depoimentos, ingressos ou reingressos. Levantei-me e saí. Esperaria a próxima reunião de terapia para reingressar. Mas, ao caminhar para o ônibus, um pensamento me fez parar. Com certeza, quando chegasse a casa iria beber, pois estava compulsivo demais! E se morresse ou enlouquecesse naquela próxima bebedeira? Voltei para o Grupo; a reunião estava em pleno andamento, coordenada pelo meu velho companheiro Nélio S.
Eu falei, trêmulo, mas decidido:
- Companheiro, sei que esta é uma reunião de serviço, mas quero comunicar que bebi e que preciso recomeçar o meu Programa. Se não puder fazer meu reingresso hoje, entenderei perfeitamente.
Nélio tomou um susto, mas recobrou-se e falou:
- O A.A. foi criado para ajudar doentes alcoólicos. É essa a nossa prioridade. Peço permissão à consciência deste Grupo para transformar esta reunião de serviço numa reunião de terapia.
Todos concordaram, mas quando a reunião de terapia começou e o Nélio me chamou para dar o meu depoimento e fazer o meu reingresso, eu já estava chorando como um menino... E nem era pela gravidade do momento: um reingresso em A.A. é sempre uma admissão pública de um fracasso da vontade de permanecer sóbrio - que geralmente não é bem recebida pela consciência coletiva do Grupo. Eu chorava copiosamente, porque sentia que algo se estava quebrando definitivamente dentro de mim, naquela noite, e que, com certeza, eu jamais voltaria à garrafa! Era o dia 26 de outubro de 1999 e eu estou, portanto, há doze anos sem ingerir uma única gotinha de álcool.
De 1967 - quando a dependência às anfetaminas destruiu o meu primeiro casamento, no Rio de Janeiro, - a 1999 - ano da minha completa e definitiva recuperação - se passaram 32 anos de uma vida envolvida por um incrível torvelinho social, moral e emocional, na verdade, um longo pesadelo! Mas logo tratei de recuperar o meu futuro, já que o passado não tinha mais conserto. Em 2004, conheci Fernanda, uma pedagoga e artista plástica, de alma nobre e coração amoroso, e embora fosse 28 anos mais nova do que eu, não hesitei em me casar pela terceira vez. Fiz certo; nunca uma mulher fez tanta diferença na minha vida quanto Fernanda, que resgatou a minha fé no amor e no casamento, e me deu, inclusive, uma nova princesinha, a Samira (que, em árabe, significa "Companheira Inseparável"), princesinha muito peralta e saltitante... Em 2006, eu comecei a resgatar a minha vocação literária - que despontou já na adolescência - escrevendo poesias, contos, crônicas e outros gêneros, em sites literários da Internet, tendo começado por este, o meu caríssimo Recanto das Letras. Despertado o autor literário que adormecia dentro de mim, ousei mais e hoje já sou autor de três livros impressos: a minha autobiografia, um livro de contos e outro, de poesias.
Jamais esqueço, entretanto, de que, para emergir do obscuro fundo de poço onde caí por muitos e preciosos anos da minha vida, eu precisei da ajuda de muitas pessoas, especialmente os companheiros de A.A., alguns amigos sempre fiéis (que foram poucos) e os desconhecidos que me deram a mão, solidários com o meu sofrimento. Por isso, supondo que a minha experiência de vida possa ser de grande valia para os que estão nas sarjetas da vida, derrubados pela dependência química - tão desconcertante quanto dolorosa doença, que é física, mental e espiritual - eu a repasso, sempre que me é possível, em palestras em escolas, instituições de saúde ou religiosas, ou em textos de quaisquer veículos de comunicação, em caráter absolutamente voluntário e gratuito. Tenho o maior interesse que todos saibam que é perfeitamente possível a libertação de qualquer dependência química - mesmo a mais devastadora, como foi a minha - sem gastar nenhum centavo ou aderir a qualquer seita ou religião, bastando seguir o seguinte roteiro: a) Admitir sem reservas que é um dependente químico; b) Desejar, honesta e sinceramente, recuperar-se dessa dependência; c) Aderir a um Programa de Tratamento, e d) Jamais Desistir!
Por fim, fico pensando no erro que alguns cometem, ao dizer que não existe felicidade na vida; quem assim diz, com certeza não sabe o que é infelicidade. Quem a tem e não sai dela, é um infeliz: quem foi infeliz, mas deixou de sê-lo, em nenhuma condição de vida pode ser classificado senão a de feliz.
Não duvidem, pois, que sou um homem feliz...
INFORMAÇÕES ÚTEIS:
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
“Alcoólicos Anônimos é uma Irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver o seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de parar de beber. Para ser membro de AA não há necessidade de pagar taxas nem mensalidades, somos auto-suficientes, graças às nossas próprias contribuições. AA não está ligado a nenhuma seita ou religião, partido político, nenhuma organização ou instituição, não deseja entrar em qualquer controvérsia, não apóia nem combate quaisquer causas. Nosso propósito primordial é mantermo-nos sóbrios e ajudar outros a alcançarem a sobriedade”
(Preâmbulo oficial de AA, Alcoholics Anonymous World Services, Inc.)
Alcoólicos Anônimos nasceu em 1935, em Akron, Ohio, Estados Unidos, quando Bill W., um homem de negócios de Nova Yorque, tendo ficado sóbrio pela primeira vez, em anos, convenceu um médico alcoólico, Dr. Bob, a parar de beber. Trabalhando juntos, o homem de negócios e o médico observaram que o seu grau de encorajamento aumentava à proporção que ajudavam outros alcoólicos a abandonarem a bebida.
Foi à luz desse princípio espiritual que cresceu a Irmandade dos Alcoólicos Anônimos, expandindo-se pelo mundo inteiro.
Em 05/09/1947, Harold W., um americano que ingressara no AA e que viera fixar residência no Brasil, fundou, junto com outros alcoólicos, o primeiro Grupo de AA do Brasil – o Grupo Central do Rio de Janeiro.
Atualmente o AA conta com mais de 90 mil Grupos em 146 países. No Brasil, estima-se que são mais de seis mil Grupos.
O PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO DE AA
O Programa de Recuperação do Alcoolismo, sugerido pelo AA, se baseia na Experiência dos seus membros, na Medicina e na Religião. O alcoolismo é visto como uma doença progressiva e incurável, mas que pode ser detida pela abstenção total do álcool sob todas as suas formas e é sugerido ao participante um programa de recuperação, baseado em doze princípios espirituais, os Doze Passos
Não se sugere nenhuma forma de conversão religiosa aos participantes, nem se prescrevem medicamentos. Trata-se de um método de tratamento do alcoolismo no qual seus participantes funcionam como terapeutas uns para os outros, compartilhando entre si as suas experiências no sofrimento e na recuperação do alcoolismo, experiências essas que se revelam altamente proveitosas para aqueles que desejam abandonar a bebida.
Todos os membros de AA são alcoólicos que hoje estão reaprendendo a viver sem o álcool. Sem sermões nem conselhos, acolhem os recém-chegados, oferecendo-lhes toda a ajuda disponível em AA. Este é, em linhas gerais, o Programa de Recuperação do Alcoolismo, de AA, que é simples, mas surpreendente: mais da metade dos doentes alcoólicos que procuram o AA param de beber imediatamente.
ONDE PROCURAR AJUDA:
Alcoólicos Anônimos no Brasil
Av. Senador Queiroz, 101, 2º and. Cj. 205
São Paulo – SP
Cx. Postal 3180 – CEP 01060-970
Tel: (011) 3229-3611
http://www.alcoolicosanonimos.org.br