A autoridade está na experiencia
Quando eu era criança e fazia da vida de mamãe um inferno de preocupações mil, nunca imaginava sua dor, seus pesadelos e seus sentimentos de ternura e cuidado por mim e, claro, pelos meus irmãos, éramos seis. Ouvia vez por outra ela dizer: Vocês só saberão o que se passa no coração de pai e mãe quando vocês também forem pai e mãe.
Aquilo tudo para mim não passava de marola e eu nunca dei importância. Fazia chantagem, pulava nas árvores, ia tomar banho no rio e nas lagoas, me embrenhava no mato caçando passarinho, ia para outros bairros e até outras cidades sem nenhum cuidado e sem autorização dos meus pais. Saía sem dizer aonde ia e nem que horas iria chegar. Achava, aos doze ou treze anos de idade, que já era dono do meu destino... E continuei a fazer isso sem nenhuma responsabilidade com a vida séria. Quanta dor mamãe e papai passaram por mim. Quantas lágrimas de preocupação, sem saber onde eu estaria naquele momento e o que de mal poderia me acontecer. Algum acidente, me afogasse, uma cobra me picasse, me perdesse na mata, ser apanhado por marginais, me metesse em alguma confusão... Mesmo ser preso, confundido com algum bandido e até morto.
Quantas vezes cheguei em casa tarde da noite e lá estavam eles ainda acordados, à espera de minha chegada, me olhavam com muita compaixão e só então iam dormir, para depois, eu fazer tudo outra vez. Vi muitas vezes mamãe chorando, eu não sabia porque. Daí vinha meu irmão e me dizia baixinho no ouvido, mamãe estava muito preocupada contigo, não parava de falar o quanto tinha medo do que te poderia acontecer.
Fico às vezes pensando no sofrer de mamãe em saber apenas notícias minha, estando eu tão longe. À noite, sem dormir, preocupada em como eu estou e o que me poderá acontecer sem a sua proteção, seu cuidado e o aconchego do seu colo...
Hoje, longe daquele tempo e do lugar, não tenho mais papai, ele já descansa numa sepultura fria e apenas pintada de branco num lugar bem longe de mim. Eu não o vi envelhecer, morrer e ser sepultado. Pobre papai, quanto sofreu por minha causa. Levava-me em suas viagens para que eu não ficasse só e aprontasse alguma arte e me ferisse ou mesmo me desse muito mal, não queria me ver sofrer... Me amava!
Minha mãe ainda está lá, é distante e não a estou vendo envelhecer também e provavelmente não a verei morrer... Mas aquelas palavras de mamãe, como profecia, foram muito fortes e ecoam sempre em meu coração: Você só saberá o que é o sofrimento do pai e da mãe, quando você também tiver filhos.
Carrego hoje a experiência de ser pai e choro as mesmas angustias de mamãe. Tenho filhos, três, e a preocupação serena de conservar bem cada um deles. Os filhos não entendem esse sentimento, até que o ciclo os alcance também. São durões, se acham intocáveis e que nunca vai acontecer nada com eles e o pai fica se derretendo de medo de que essa barreira de autoconfiança se rompa e a avalanche da desgraça os cubra de males. Eles contestam, acham ruim esse sentimento de proteção do pai.
Um dia desse meu filho do meio pediu o carro para ir até a universidade, iria fazer uma visita a um colega, a filha mais velha disse que iria junto e o caçula também... E lá se foram os três! Meu Deus, que angustia e o coração apertado e dá a hora que ele disse que voltariam e não voltam e aquilo vai crescendo como um turbilhão de maus pensamentos e pensei comigo: E se acontece um acidente, perco logo os três... Meu Jesus amado! Pude sentir a agonia que mamãe sentia e ver a verdade em suas palavras.
Sinto-me como pagando todos os sofrimentos que impus a meus pais, no trato com os meus filhos. Até a separação que com muita dor causei à minha mãe, saindo de minha terra e vindo pra uma tão distante, isso vou pagar! Minha filha mais velha, casada, está se mudando para Belém do Pará e nos deixando aqui em São Paulo... Até nisso não está sendo diferente. Só temos autoridade para falar de algo se temos passado pela experiência, se somos testemunhas presenciais dos fatos. Mamãe sabia do que estava falando, tinha toda a autoridade para falar.
Oh! Vale da sombra da morte é essa experiência. Hoje posso dizer que estou morrendo um pouco. Com muitas lágrimas e soluços escrevo e com gosto de sangue na boca vivencio este momento. Esse lembrar de papai... Via dolorosa da alma é o sentir a dor de mamãe e o saber que até hoje essa dor não passa e os ferimentos de amor não cicatrizam nunca! E segue o eco repetindo... Oh, mamãe, como você tinha razão!