ESTA MULHER QUE ME ODEIA

Esta mulher que me odeia, não sabe nada de mim, sabe de mim nada, nada, nada: nada da minha vida, nada da minha história, nada do meu eu interior. Sabe nada de mim esta mulher que me julga e que me condena, implacável, afirmando, entre os dentes cerrados, que eu sou o lado sombrio, logo afirmando-se a si mesma, subrrepticiamente, como o lado de luz.

Esta mulher que assim me julga, sem me dar direito a defesa, nem a atenuantes, nem a apelação, esta mulher que me odeia pelo crime hediondo que só agora, 22 anos depois, eu soube que cometi, esta mulher instituiu para mim um tempo sem clemências, um tempo de caça às bruxas.

Esta mulher que me odeia, se possível me quer expulsar até mesmo de mim mesma. Esta mulher que de mim nada sabe, jamais haverá de saber do quanto tenho pedido por ela e por seu destino a um Deus mais clemente do que nós todos; não sabe quanto perdão tenho pedido a esse Deus pelo crime que involuntariamente cometi há 22 anos, meu crime do qual só muito recentemente vim a saber.

Sei (este é o meu único conforto e refrigério) que há um Deus que nos sabe, que nos sabe por trás de cada uma das nossas máscaras, por trás de cada um dos nossos terrores, por trás de cada uma das nossas renúncias, por trás de cada um dos nossos silêncios, por trás de cada uma das nossas palavras, por trás de cada uma das nossas entrelinhas, por trás de cada uma das nossas ações, por trás de cada uma das nossas omissões, por trás de tudo o que não sabemos de nós mesmos, por trás de tudo o que não sabemos uns dos outros; um Deus que sabe do que jamais saberemos; um Deus que nos sabe para além e por trás e no âmago dos nossos rostos de Culpa; para além e por trás e no âmago dos nossos rostos de Inocência.

Esta mulher que me odeia, que não sabe nada de mim nem da minha história, nem do meu interior, esta mulher me julgou e condenou a esta cruz e me está quase impossível enxergar algo para além da

presente crucificação que, mesmo que o homem do nosso mútuo e terrível amor, mulher, ainda sinta por mim o que sempre afirmou sentir,por cujo sentimento se praticaram tantos desvarios e se construíram tantos verbos novos; por cujo sentimento todos os alicerces dos nossos respectivos mundos foram abalados até a raiz, não me é possível construir qualquer edifício de felicidade sobre os escombros do edifício da felicidade (mesmo que esta tenha sido apenas sonhada),sobre os escombros da felicidade de outro ser, sobre os escombros da tua felicidade, mulher.

Pudera ver o rosto da minha inocência e me deixaria matar e morrer sem protesto e em paz, mas, só me é dado ver e carregar o rosto, o corpo da minha própria culpa, assim como só me resta ver e carregar também o rosto, o corpo da vossa própria culpa, da culpa vossa, da culpa também de vós ambos, culpa consciente ou não, culpa pela qual não vos condenei porque não me julgo, certamente não me julgo com direito a tal.

Ainda me resta a esperança mínima de uma comutação de pena, talvez pela pena de prisão perpétua, esta pena que já venho cumprindo há séculos, sem que vós o saibais nem eu mesma a saiba, com certeza, a esta pena, ainda que a venha carregando nos ossos e no sangue e na alma, como afirmei, há séculos.

Se tal esperança vier a se revelar inviável, impossível, por falta absoluta de qualquer clemência e de qualquer presença mínima de perdão, resta-me somente, no caminho em direção à morte, carregar comigo a certeza da Ressurreição ou, pelo menos, a certeza da Necessidade da Ressurreição, da Ressurreição para todos nós, em tempo outro, algures, onde exerceremos, mais uma vez, o direito e o dever de nos ressarcir uns aos outros, até que todos os respectivos caminhos se vejam, efetivamente, purificados, amém.

Zuleika dos Reis, ainda na manhã de 30 de novembro de 2010, na capital de São Paulo, Brasil.