PELA PAZ ( Abraão e Ló)
De entre as situações conflituosas mais antigas, encontra-se a que ocorreu entre Abraão e Ló, há cerca de quatro mil anos, relatada no capítulo 13 do livro de Génesis. Ao analisá-la, podemos verificar que o diferendo havido entre os pastores de um e os do outro resultou do aumento das suas propriedades, particularmente o gado, a cuja criação se dedicavam. Assim, de tal modo se multiplicaram os seus bens, que a terra, ou seja, o campo em que se movimentavam, tornou-se pequena demais. Diz a Escritura que ... não tinha capacidade a terra para poderem habitar juntos ... (versículo 6). Essa foi a causa do conflito. Tratava-se, portanto, duma crise de crescimento.
Costuma dizer-se que “quanto maior a nau maior a tormenta”. O crescimento e o progresso podem acarretar dificuldades. Por exemplo: quando aumentam as nossas responsabilidades profissionais, quando aumenta a família, quando há mais ocupações, ou quando o negócio se expande, é natural que surjam problemas, contendas ou atritos. Semelhantemente, quando uma igreja cresce, quando há mais obreiros e mais actividades, é também normal surgirem dificuldades, divergências. Porquê? Talvez por falta de espaço, interferências desagradáveis, personalidades que se chocam, sensibilidades temperamentais, excesso de intimidade, atropelos, desentendimentos.
Que fez Abraão para solucionar o problema? Será que recorreu a estratagemas de pressão, a aliciamento ou a intrigas? Nada disso. Em primeiro lugar ele promoveu um entendimento através de conversações. Dirigiu-se Ló. Sendo mais velho, tomou a iniciativa de ir falar com o sobrinho. E disse a Ló: Não haja contenda entre nós, e entre os nossos servos, porque somos irmãos..., isto é, familiares. (versículo 8)
Também para os problemas da actualidade, quer no lar, no emprego, na Igreja ou na sociedade em geral, há que começar por estabelecer diálogo, ou seja, uma discussão franca, aberta e directa desses mesmos problemas. O diálogo é o segredo básico para a paz, como Jesus mesmo ensinou, com suprema autoridade, em Mateus 18,15-22.
Abraão promove conversações mas também fez concessões. Ele deixou que Ló escolhesse o campo da sua preferência, sujeitando-se a ficar prejudicado como, aparentemente, ficou. Com efeito, Ló escolheu a melhor terra do ponto de vista material, embora tivesse ficado com as cidades corruptas de Sodoma e Gomorra onde viria a ter grandes dificuldades de ordem moral e espiritual, ele e a sua família. (Génesis 19). Mas o que importa realçar é a atitude generosa de Abraão ao deixar que fosse o sobrinho a escolher. Ao dar-lhe preferência, procedeu como as Sagradas Escrituras viriam mais tarde a recomendar: "Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual, também, para o que é dos outros". (Filipenses 2,4), "...preferindo-vos em honra uns aos outros" (Romanos 12,10), porque "o amor não busca os seus interesses" (I Coríntios 13:5). É assim. Para que haja paz é necessário fazer concessões, dar oportunidade aos outros, ser-se compreensivo e flexível, manifestando genuíno amor.
No entanto, mesmo assim, há certos casos em que a única ou a melhor solução é a demarcação de campos. Demarcar significa delimitar, ou seja, fixar os limites, estremar. Na verdade, muitos conflitos ocorrem por não haver campos definidos para cada qual. Ora, se forem estabelecidas claramente as posições e as atribuições, se forem esclarecidas as situações e distribuídas concretamente as responsabilidades, será mais difícil haver atropelos, mal-entendidos e até duplicação de esforços desnecessária. Isto aplica-se às divergências na família, na Igreja, no âmbito duma empresa, nos grandes fóruns internacionais e, por exemplo, no conflito que opõe há décadas os islaelitas e os palestinianos.
É sempre possível, natural e até salutar que haja pontos de vista diferentes, e cada qual tem todo o direito de possuir, manter e defender as suas convicções.
Por vezes os conflitos resolvem-se sem ruptura, chegando-se a uma plataforma de entendimento. Mas nem sempre é assim. Por vezes, uma separação amigável é o mais indicado, ou a única saída viável.
O importante é que, em qualquer dos casos, os litigantes se continuem a aceitar e a respeitar mutuamente. E mesmo quando houver separação, demarcando cada qual o seu campo e o seu caminho, tudo seja feito de forma cordata, como Abraão e Ló se separaram através de um pacto pacífico. Separando-se mas continuaram a ser amigos.
E assim foi superada a crise de crescimento que ocasionou o litígio entre estes dois vultos da história bíblica. A paz e a harmonia entre eles foi conseguida através de conversações francas e directas, através de concessões reveladoras de boa-vontade e espírito generoso e, finalmente, neste caso extremo, pela demarcação de campos, definindo um plano e aceitando-o sem mais problemas, sem amargura nem ressentimentos.
Hoje, facilmente se condenam as guerras entre nações, e as guerrilhas entre facções rivais... longe de nós. E, no entanto, talvez nada façamos para sanar conflitos ao pé da nossa porta, ou mesmo dentro de nossa casa, por alheamento ou intransigência de cada um de nós.
O apóstolo Paulo aconselhava: "Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens". (Romanos 12,18) Mas é com a Palavra suprema e soberana do nosso Senhor e Mestre que concluímos:
"Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus". (Mateus 5,9)