AOS MEUS AMIGOS
AOS MEUS AMIGOS
Amigos queridos: não desejo para ninguém um tempo como o que atravesso, há muito já. Um tempo sem rosto, um tempo de pensamentos, palavras, silêncios e gestos exaustos, sempre a viverem o mesmo, a falarem do mesmo, das mesmas fantasmagorias, dos mesmos sonhos impossíveis de qualquer real, do trabalho que já não há, da família de pouca ou nenhuma solidariedade, dos joelhos tão frágeis, do amor que não tem nem jamais teve o direito de ser presença efetiva, do corpo em sempre castidade obrigatória, da fé que oscila o tempo todo entre o SIM e o NÃO.
Eu me afastei de tudo e de quase todos; eu estou, há muito, quase monja em clausura. Talvez, quando me seja facultado voltar (se ainda me for facultado voltar) ao mundo não encontre ninguém mais à minha espera, talvez não encontre mais ninguém.
Só escrevo para lhes dizer que, ainda que não me acreditem, lhes permaneço fiel, amigos. Decerto já não me pareço com aquela que vocês conheceram um dia, uma pessoa que tinha alegria, confiança, que repartia sua voz, seu canto, sua palavra, suas esperanças como se repartisse o pão de si mesma. Hoje há marcas dolorosas, cicatrizes que qualquer leve arranhão reabre e as faz de novo sangrar, tais cicatrizes. Descobri também que causei muito mal só pelo fato de existir, à vida de algumas pessoas. Descobri que meu destino importa muito pouco para o único ser que teria o dever de ajudar-me a mim e a minha mãe ( minha única família real) e isto talvez tenha sido e seja, cotidianamente, a dor mais funda e irremediável de todas.
Algumas pessoas me fazem sentir como se eu fosse uma criminosa; ainda bem que o afeto de outras neutraliza a energia pesada que me vem daqueles desafetos. Não sei de crimes meus mas sei, e como, de erros graves, omissões, fracassos, renúncias... e culpas.
Estou escrevendo tudo isso não sei bem porquê. Talvez por hoje estar particularmente aflita já que há uma amiga querida ( sei que há vários mais amigos também) que não se conforma com o meu silêncio e hoje me "assediou" deveras. Ela é muito jovem e não pode, graças a Deus, compreender o que é sentir em si a falência do próprio ser e da própria vida pessoal, a falência da coragem e da vontade, o ter que guardar para si segredos de Outra Natureza, segredos que nem psicanalistas nem psiquiatras poderiam efetivamente compreender e, por esta razão, me poderiam imputar o título de louca sem remissão ou então eu teria que passar, de novo, pela experiência de ser recusada para tratamento porque "como alguém com uma linguagem tão articulada pode estar tão desarticulada quanto se diz?" Parece incrível, mas isso já tive que ouvir, de um especialista. Alguém poderia sugerir: "Por que você não tenta um tratamento espiritual?" Se alguém sugerir tal, até lhe dou razão mas, também resisto a isto, este é um dos temas dos quais não consigo nem posso falar. Outros dirão: "Neste caso, o seu presente "discurso" é um discurso sem saída, só de impasses. Se é assim, por que fazê-lo?" Quem assim pensar, tem toda razão. Realmente, se faço esse discurso "fechado" a conselhos, por que fazê-lo? Talvez para repartir-me, na alguma lucidez que ainda me resta; talvez apenas por isso e isso já é muito. Peço-lhes alguma paciência.
É parar por aqui que, em verdade, ninguém, amigos nem conhecidos têm que perder tempo lendo estas coisas. Deve haver algum caminho ainda, escondido entre os escombros, ou no fundo do meu mar, ou em alguma estrela a persistir, ainda e invisível, em algum céu de mim.
Escrito "de primeira", nesta noite de 18 de outubro de 2010.