De recordar e reviver...e seguir em frente
De um de meus poetas prediletos, Manuel Bandeira, a visitar, muitas décadas depois, fogueiras de São João de sua infância, naquele Recife de ruas com nomes como Rua da Aurora:
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Ou o poeta a abrir manuscritos de gente que já dormia (e vivia) profundamente, ao som de fogos de Bengala, em fogueira acesa em sua memória:
A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva, em gotas glaciais
Chora monotonamente.
E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.
Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.
Hart Crane, escritor americano, aos vinte e um anos de idade, escreveu, após ler cartas de amor de sua avó, encontradas em cantinho esquecido sob o telhado:
Não há estrelas esta noite,
Apenas aquelas da memória.
Entretanto, há espaço imenso para lembranças
Na cinta frouxa da chuva macia.
Há lugar bastante
Para as cartas da mãe de minha mãe,
Elizabeth,
Prensadas por tanto tempo
Em um canto do telhado
Que estão esmaecidas e macias,
E podem, até ,derreter como neve.
Na grandeza desse espaço
Os passos devem ser doces.
Tudo está preso por um invisível cabelo branco.
E treme como mãos de um junco alcançando o ar.
Fotografias, e também cartas, celebrações, aromas, que nos encontram, assim , quase por acaso, remexem fundo passagens de passado.
Ontem parei, quando me vi, de frente, com três desses deflagradores de tempo e espaço vividos: a menina de quatro anos, a casa e cinco irmãs. Menina nos visita novamente. Desta vez, mais nítida.
Tinha quatro anos--tranças
loiras, vestido com uma barra azul, curativo no braço, um anelzinho--e sorria. Feliz, em quintal de casa, pertinho do Rio Santa Maria, ao lado da avó materna, irmãs e pais. Sabia que regressaria, com Vó Mutti, para sua caminha, seu cachorro Udo.
E, aí, desponta tanta história, que se agrega ao cordão de outros tramados, que a foto ganha vida nova e, por aquela mãozinha do anel, somos conduzidos para vencermos batalhas. E chegamos, exatamente, aqui e agora, ainda sentindo o toque delicado de seus dedos, em nosso coração.
E, posso, então, responder a Bandeira:
Estão todos dentro de nós, às vezes, quem sabe, dormindo ou deitados, mas, bem aqui, aquecendo nossa alma e , como farol, clareando caminhos de nossa jornada.
Ilram Rekrem
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