Gentileza gera gentileza
A mais subestimada das virtudes humanas faz muita falta no mundo
Eliane Brum

 


Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo)

Vivo num prédio em que boa parte das pessoas não dá bom dia. Nem mesmo um grunhido. Nada. Fora o resto. Na semana passada, abrimos o porta-malas do carro para retirar as compras do supermercado, bem ao lado do elevador. Duas mulheres puxaram a porta antes que conseguíssemos alcançá-la, para não ter de dividir o elevador. Puxaram a porta, porque se ela tivesse fechado naturalmente teria dado tempo de entrarmos. Dá para acreditar? Claro que dá. Volta e meia cruzo no pátio, indo ou vindo, com gente que vai ou vem – e abaixa rapidamente a cabeça para não cruzar os olhos e, então, ser obrigada a me cumprimentar. Essas pessoas não me conhecem, nem sabem se sou bacana ou chata, logo, não é pessoal. Até o zelador, cujas atribuições incluem dar bom dia, só cumprimenta quando está de bom-humor.

Então, aconteceu.

Aquele vizinho, em especial, me irritava muito, porque ignorava solenemente meus sonoros bom-dia e boa-noite. Ele simplesmente passava por mim – e por todo mundo – numa marcha militar, olhos fixos em alguma movimentação de tropas no campo adversário. Eu voltava da minha aula de pilates, na manhã de quarta-feira, toda alongada e saltitante, quando o vi avançando em passadas largas na minha direção. “Bom dia!”, eu disse. Nada. Grilos. Cri, cri, cri.

Aquilo me irritou muito. Mas muito mesmo. Não pensei. Simplesmente me virei, marchei mais rápido do que ele, postei-me na sua frente e gritei: “Bom dia! É importante dar bom dia para as pessoas!”. Ele ficou totalmente desconcertado. E o resto eu não vi, porque marchei direto para o elevador, num passo tão marcial como o dele.

Foi uma cena totalmente absurda. Eu fui absurda. Até é possível reivindicar boa educação – embora seja cada vez mais difícil. Mas é impossível exigir gentileza. E não é nada gentil obrigar alguém a ser gentil. Eu fui o oposto de gentil gritando diante do homem que ele deveria ser gentil.

Mas o episódio serviu para que eu pensasse nessa virtude tão subestimada em nosso mundo. Gentileza parece algo menor, descartável. Em alguns casos, até meio otário. Ou fora de moda. Até para escrever essa coluna me pareceu prosaico demais. Pensei: vão achar que estou sem assunto. Então, decidi correr o risco de soar piegas.

“Gentileza gera gentileza”, o título da coluna, foi tomado emprestado dele, o próprio Gentileza. Se você não o conhece, vá atrás de sua história. Garanto, vai ganhar o dia. Eu mesma, na minha ignorância, só sabia que Gentileza havia sido um poeta das ruas que escrevia pelas pilastras do Rio de Janeiro, um pouco maluco, meio folclórico, um tanto extraordinário. E que um dia foi tema de uma música de Marisa Monte. Era bem mais do que isso, descobri. Gentileza foi um grande homem, com um grande legado e uma grande vida.

Passou a maior parte dela pregando a gentileza como um modo de existir. Depois que morreu, em 1996, velhinho, aos 79 anos, a Companhia de Limpeza Urbana do Rio cobriu seus escritos nas pilastras do viaduto do Caju com tinta cinza. Não podia ser mais simbólico. O apagamento de Gentileza gerou um movimento de reação chamado “Rio com gentileza”, que resgatou o livro urbano de Gentileza e propõe a gentileza como uma forma de estar no mundo. Comecei a pesquisar sobre o Gentileza na internet e de cara
entrei no site do movimento. Depois de uma delícia de passeio por lá, saí com vontade de propor o movimento Brasil com gentileza para o meu vizinho.

É sério. Parece pouco. É muito. Faz uma enorme diferença. Quando somos maltratados em algum lugar, por alguém, isso já envenena o nosso dia. E desencadeia reações desencontradas em cadeia. Por outro lado, às vezes nem percebemos, mas a beleza de outro dia, nosso suspeito bom-humor num dia comum, começou lá atrás, quando alguém teve um gesto gentil, nos acolheu com simpatia, nos tratou bem. Seja o nosso chefe, o motorista do ônibus, o balconista da padaria. Faz bem para a vida ser tratado com gentileza. E um gesto gentil também desencadeia reações similares em cadeia. Gentileza, o profeta, tinha toda a razão quando respondia aos que o chamavam de maluco: “Maluco pra te amar, louco pra te salvar”.

Gosto muito de observar as pessoas, os enredos. Percebo que grandes desencontros são desencadeados por um detalhe muito pequeno. É como aquelas cenas de animação, em que o personagem tira uma pedrinha do lugar e causa uma avalanche. Você já deve ter visto em alguma reunião de empresa ou mesmo dentro de casa ou numa repartição pública. Alguém fala algo sem nenhuma gentileza, que poderia ser dito de um jeito muito mais cuidadoso. O destinatário daquela mensagem recebe como agressão e retruca um tom acima. Daí em diante, já era. Não acaba em nada de bom.

Se cada um de nós fizer uma reconstituição mental do nosso dia, hoje mesmo, vai perceber que o pior dele foi causado porque não foram gentis conosco nem fomos gentis com os outros. Desde o bom dia que faltou, o por favor que não foi dito, a buzina desnecessária no trânsito, a cara fechada, o sorriso que economizamos, a ajuda que poderíamos ter dado e não demos, ou ainda a que não recebemos, o elogio que não veio, a crítica que deveria ter sido feita para somar, mas foi programada para massacrar, o veneno que escorreu da nossa boca e da dos outros. Uma soma de pequenos e desnecessários gastos de energia que só serviram para nos intoxicar.

Gentileza é o exercício cotidiano de vestir a pele do outro. É cuidar não de alguém, mas de qualquer um. Mesmo que ele não seja nosso parente, mesmo que seja um estranho. Cuidar por nada. Sem precisar de motivo. Cuidar por cuidar.

Por que algo tão essencial se tornou supérfluo? Porque gentileza não se consome, talvez. Não tem valor monetário. Não se ganha nada de material com ela. Também não custa nada.

Esta, em parte, é a insubordinação contida na arte de Gentileza, o poeta das ruas. Ele, que nunca aceitou um centavo pela sua gentileza. Dizia: “Cobrou é traidor – o padre tá esmolando, o pastor tá pastando e o papa tá papando, papão do capeta capital”.

O resgate desta gratuidade, de algo que é dado sem esperar nada em troca, é o que faz nosso mundo estremecer. Como o que Gentileza deu à cidade do Rio de Janeiro: não apenas seus escritos, mas seu existir. Sua estética era sua ética, ele as continha ambas no seu viver.

Era grande o que ele gerava nas vizinhanças do Caju, ao dar algo que ninguém pediu – sem querer ganhar nada com isso. Nos últimos tempos só acenando sorridente ao lado de sua obra física. Suavemente ele punha abaixo a lógica do mundo. Só sendo. E ser era tão subversivo que, na época da ditadura, chegaram a achar que Gentileza era comunista. Teve de dar explicações às autoridades sobre as iniciais PC do estandarte que então carregava pelas ruas: não, não, PC não era Partido Comunista, mas Pai Criador.

Hoje, tratar mal as pessoas, marchar pelos corredores, fechar a cara, não dar bom dia e dizer coisas duras sem nenhum cuidado parece ser um atributo dos poderosos. Quase uma virtude. Ao conhecer alguns CEOs por aí, fico imaginando se no currículo deles está escrito: “Há 20 anos grita com quem está abaixo dele na hierarquia”. Ou: “Tem PhD por Harvard em humilhação dos subordinados”. Ou ainda: “Massacra os funcionários em inglês fluente, mas se for necessário pode xingar também em francês e mandarim”.

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O conjunto de características que costuma cercar o poder é imediatamente incorporado pelos subordinados. Nessa lógica, há sempre alguém mais ferrado que podemos maltratar, a quem não precisamos beneficiar não com a nossa gentileza, porque gentileza não tem nada a ver com isso, mas a quem não precisamos beneficiar com a nossa bajulação. Canso de ver motoboys ser maltratados por recepcionistas de empresas chiques, enquanto me tratam bem porque numa rápida avaliação da minha roupa acreditam que talvez, quem sabe, posso ser alguém importante. Canso também de ser gentil e, por isso, ser tratada com rispidez, porque confundem minha gentileza com fraqueza. Recuso-me a embarcar nessa lógica que me obrigaria a falar alto e exalar arrogância para ser tratada com deferência. Prefiro falar com delicadeza e exalar apenas o meu perfume.

Acho que ser gentil não é nada prosaico, é um ato de resistência diante de uma vida determinada por valores calculáveis: só faço tal coisa se ganhar algo em troca, seja dinheiro ou um dos muitos pequenos poderes ou um ponto a mais com quem manda. A gentileza vira essa lógica do avesso: sou gentil sem esperar nada em troca. Sou gentil porque sou. Não porque tenho ou porque quero. Apenas sou. E, como sabemos, o ter – o consumir desenfreado – é aquele que vai tentar preencher o buraco aberto pela impossibilidade do ser.

Numa de suas internações porque alguém decidiu que ele era louco, Gentileza passava os dias com os outros internos ao redor, pregando sua gentileza. Até que um psiquiatra teria dito: “Gentileza, você veio aqui para nós te curarmos ou para você nos curar?”. Alguém que, como ele, havia se desfeito de todo o patrimônio para pregar a gentileza só poderia mesmo ser considerado louco nesse mundo. Mas, ainda bem, havia um médico que também era um pouco doido para devolver Gentileza às ruas.

Dia desses flagrei-me sendo indelicada com a moça do telemarketing. Me senti muito mal. É chato, todo mundo sabe. Ela também acha chato, tenho certeza, ter de falar como um robô horas a fio, dia após dia. É bem pior para ela do que para mim. Desde então, tenho me esforçado. Pouco antes de começar a escrever esse texto peguei a mim mesma respondendo secamente a uma assessora de imprensa que ligou, errando o meu nome (Elaine Blum) e perguntando se eu trabalhava com um tema que não tem nada a ver com o que faço. É verdade que não é legal errar o nome e a área das pessoas para quem queremos dar uma informação, mas também é óbvio que ela preferia acertar. Às vezes até nos convencemos que temos razão de sermos incivilizados, mas não temos. Se tínhamos alguma, a perdemos no momento em que agimos mal. E sempre há um jeito de dizer, mesmo coisas muito duras, sem arrasar quem nos escuta.

Tenho uma grande amiga que se apaixonou por um homem  numa festa. Foi um dos poucos casos de amor ao primeiro gesto que testemunhei. Ela derrubou comida na roupa e ele imediatamente pegou um guardanapo para ajudá-la a se limpar. Logo depois, a encontrei no banheiro e ela me pegou pelo braço: “Vou casar com aquele cara”. E eu, chocada diante de alguém que era famosa por ser avessa a casamento: “Como assim?” E ela: “Ele é gentil”. Ele era – e é – um homem incrivelmente gentil. Estão juntos há sete anos, e o deles é um dos casamentos mais felizes que conheço. Minha amiga, que tinha alguns cantos bem abruptos, ganhou contornos mais arredondados: descobriu que também havia uma mulher gentil morando dentro dela.

Gentileza não é mesmo algo que temos, é mais algo que somos. E que nos tornamos. Talvez o verdadeiro poder esteja naquele que pode dar sem esperar nada em troca. Como Gentileza.

Assim como inventaram um dia sem carro, acho que podíamos criar um dia com gentileza. Não precisa ser uma campanha de massa, basta uma decisão interna, silenciosa, de cada um. Só para experimentar. Um dia só tentando ser gentil. Engolindo a palavra ríspida, calando a fofoca ainda no esôfago, olhando de verdade para as pessoas, escutando o que o outro tem a dizer, mesmo que não nos pareça tão interessante, sorrindo um pouco mais.

Pequenos gestos. Segurar o elevador, dar oi e dar tchau, não se atravessar na frente de ninguém nem sair correndo para ser o primeiro, ter paciência em vez de se irritar, elogiar um pouco mais, deixar passar o que não foi tão legal, mas também não foi tão grave e, quando a crítica for imprescindível, abusar da delicadeza. Um dia só, mesmo que seja apenas para experimentar algo diferente.

Quem sabe o que pode acontecer?