Escrever por estes dias tão nefastos é como mergulhar no fundo do mais profundo do mais que absoluto silêncio. Silêncio que eu faria, sempre, se pudesse, se conseguisse. Mas não consigo, essa palavra presa na garganta tem também o seu direito de liberdade. E eu me descubro livre por ela, para ela e com ela. A Palavra.
Não que eu não goste de festas. Gosto muito, demais até. Não gosto é dessas coisas impostas às pessoas, dessa mal disfarçada hipocrisia, dessa ilusão de que há um “espírito de natal”, que essa mera passagem de um ciclo de doze meses para outro ciclo de doze meses seja algo mágico ou transcendental. Somos humanos e só isso. O que há de mágico nisso é a capacidade de perceber isso e conviver com isso, de fazer disso o que nos marca profundamente como seres que somos.
Que futuro me espera? Arrumar as malas para viajar a trabalho amanhã, terminar o desenho que está ali em cima da mesa, rascunhar um outro poema, terminar essa postagem, dormir hoje e acordar o mesmo, porque não tenho pendência nenhuma com o mesmo que sempre fui e vou sendo a contento, que vou conseguindo ser, seguindo minha linha de erros e acertos, mantendo estes e eliminando ou consertando aqueles.
Tem coisas que se quebram e não podem mais ser consertadas. Tem coisas que emendadas passam a ser outra coisa que não a coisa que eram antes de terem sido quebradas. Tem caminho que não tem volta, tem caminho que não leva a lugar nenhum.
Não me façam crer, este é o ponto, que essa convergência universal em tempos de paz e amor, de espírito voltado para o bem, de sintonia com o sagrado, não me façam crer que isso muda a dor de viver, a miséria do mundo e a crueza da realidade. Tudo isso se muda a cada momento, com cada novo olhar sobre as mesmas coisas velhas ou até com um olhar velho sobre alguma coisa nova. Isso tudo se muda com a vontade, essa esquecida capacidade humana de decidir sobre o próximo passo, a próxima palavra, o próximo gesto. E se muda com a coragem de decidir.
Feliz Ano Velho, Feliz Ano Retrasado, Feliz começo da sua vida, desgraçados, desde que tenham feito qualquer coisa de pouco para melhorar mais esse ciclo de trezentos e sessenta e cinco dias que se iniciam.
Eu sei de todas as máscaras que usam, eu as desenhei como pude, como consegui, sou poeta, reles poeta, fui desenhando como via para ver se viam como deviam.
Feliz Ano Novo a todos os garis do alto de suas vassouras... obrigado por terem limpado dia a dia a nossa sujeira. Feliz Ano Novo aos detentos, às loucas e aos lazarentos, aos moleques do internato... Feliz Ano Novo a todos aqueles que não podem andar de Jaguar, de Ferrari, de Porsche ou mesmo de avião. Àqueles que não escreveram nenhuma merda em nenhuma dissertação de mestrado e nem em nenhuma tese de doutorado.
Feliz Ano Novo às meretrizes, todas elas, a todas as putas que mantiveram todos os cafajestes ocupados por uns instantes.
Feliz Ano Novo a todos estes que eu queriam que não existissem, pois queria que todos fossem apresentadores de televisão a se perguntarem perplexos sobre quem iria recolher o nosso lixo e quem iria varrer nossas ruas.
Feliz Ano Novo a todos nós, a todos vocês, a todos eles...

 
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 04/01/2010
Reeditado em 28/08/2021
Código do texto: T2009763
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