A prenda (aos pais)
No Dia dos Pais
Era dia de domingo. Minha filha, o priminho e uma amiguinha dela e eu estávamos jogando um desses jogos em que, quem viesse a perder, tinha de pagar prenda. Íamos revezando no perde-ganha, mas faltava apenas minha filha para passar pelo “mico”.
Não demorou e a “conta” da minha filha chegou. A sugestão de “castigo” para ela foi cantar “O poeta aprendiz”, uma composição de Vinícius de Moraes e Toquinho que Adriana Calcanhoto inseriu no álbum “Adriana Partimpimpim”.
Minha filha se posicionou para cumprir a tarefa e imprimiu uma solenidade à coisa. Parece que vi ali aquilo que os estudiosos da psicologia dizem sobre a relação das crianças com as regras: até certa idade, elas levam à risca a regra e o cumprimento da norma. Só mais tarde flexibilizam o teor de uma lei, incluindo o senso de proporção e equidade, interpretando o que a heteronomia sustenta para, com isso, cavar autonomia. Foi emocionante ver minha filha seguindo a regra do jogo como se fosse um dever merecedor de pompa e circunstância.
Sentada, posição búdica, esmerada, concentrada a fundo, minha filha calou o entorno. Ninguém se mexia, silente, parecendo não querer perder um só respiro que ela fazia entre uma e outra parte da canção, cuja letra seguiu à risca, tal como segue:
“Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante
Anos tinha dez
E asas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic-ploc
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Pra tangerina
Pião ou menina
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava um mergulho
Sem fazer barulho
Ê, ê, ê ê ê ê ê ê ê ê
Em bola de meia
Jogando de meia
Direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar
Amava era amar
Amava Leonor
Menina de cor
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Com beijos e rimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder
ê, ê ê ê ê ê ê ê êrrr
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser”
Esse momento ficou indelével em minha memória. Revivo-o sempre forte e intenso pela maneira digna, pura e envolvida com que minha filha o poetizou. Por isso, hoje, desejo a todos os pais o espírito do “poeta aprendiz”: jovial, peralta, livre, contente, como mostrou ser o “mico” de minha filha, o qual é hoje, para mim, uma lembrança feliz, de poeta.
Parabéns a todos os pais!!!