EU E DEUS

Meu Pai,

não, não lembre se por muitas das vezes

eu pronunciei na fome, o teu santo nome.

Na fome que era minha, e que era tanta !

Gritei meu Pai, sem me dar conta das tantas outras fomes,

das fomes sem cura, tal e qual mendigo de rua,

na boca do lixo, da sempre inesgotável procura.

A fome dos miseráveis, fomes que vão além da fome,

vazio que não sustenta, mas que o corpo

inexplicavelmente suporta, vence, agüenta.

Pai,

não lligue se acaso lembrei de ti no meu frio,

que era o mais frio de todos os frios, calafrio e solidão !

Implorei a mão aquecida, mão amiga,

sem entender todas as mãos que cruzaram

estendidas, o meu caminho.

Corpos esparramados pelo chão da madrugada muda,

úmida, gelada, indiferente às preces

e aos sonhos daquela gente.

O peito nu, o corpo nu, a alma completamente nua meu Pai !

Milhares de olhos congelados a espera de um milagre teu e de um carinho meu,

como se o sol pudesse invadir a noite, acendendo a cidade meio que morta, luz no breu.

Não meu Pai, não!

Esqueça a dor que eu te passava.

Dor insana, companheira que maltratava, dor doída,

carne viva, sangue e ferida !

Minha dor não me fez sentir a dor dos mutilados,

dos quase mortos e de todos os desesperados,

doentes da vida, na fila da morte, a única saída.

A dor da perda, da ausência de espaço,

no vazio onde repousa a falta de um pedaço.

Da cegueira infinita, das bocas cansadas,

no silêncio de nem conseguir te pedir nada.

Meu Pai,

eu hoje quero que não olhe por mim.

Amparado em meio a uma culpa medonha,

que é de tristeza e de vergonha,

atordoado, te contemplo do alto deste chão frio e dolorido.

Olhar perdido...estrela na imensidão !

E se um pedido só me for concedido, ó Pai,

rogo por este cego arrependido,

uma gota magnífica do teu perdão.

(Reedição)