DOAR-SE, PORQUÊ?
Quase tudo o que você tem não é você.
Já pensou nisso?
Seus olhos, por exemplo, são janelas pelas quais você recebe as sensações de luz e sombra e pode se encantar com as explosões de cores e de formas que compõem o universo ao seu redor.
Veem por seus olhos, muitas vezes num repente, os indutores de energias que despertam seus desejos e você então navega livremente em fantasias.
Não é verdade?
Pois os seus olhos são seus pertences.
Não são você!
Não é você a sua mão, nem a sua perna, seu nariz, sua barriga, nem é você a sua boca, a covinha que tem no rosto, o dente, a unha, o tornozelo.
Nada de seu corpo é você, nem mesmo o seu coração.
Já pensou nisso?
O quê é você, então?
Não sei.
Tudo que eu sei é que você não é nada disso que tem em você.
Quem tem amor por você por certo ama seus olhos, mas não por eles mesmos e sim por você.
Quem tem amor por você vai amar a cor de sua pele, a forma de suas mãos, vai gostar de suas pernas, vai se excitar ao ver você, mesmo que um dia esteja empurrando seu corpo em uma cadeira de rodas.
E de quem são as suas coisas?
São suas, claro.
São seus os olhos que você tem.
São seus os seus pulmões, e os seus rins são seus.
E são seus todos os órgãos dos quis faz uso ao longo da vida para se encontrar ou se perder.
São seus para seu uso pessoal e alguns intransferíveis enquanto você estiver nesta jornada que termina um dia.
E quanto terminar você terá decidido o que fazer com eles.
Queimar? Deixar apodrecer?
Ou demonstrar que aprendeu a amar e bem por isso mesmo os resolveu doar.
E por falar em doar, e em doar depois de mortes, há mil venturas a experimentar bastando doar-se em vida.
(de meu antigo caderno de capa de pano)