PARA UM SOLDADO ÀS VÉSPERAS DO NATAL
Ontem, na TV, vi tua imagem retornando da guerra. Senti pena de ti: olhos assustados, pernas dilaceradas e uma preocupação enorme em aparecer bonito frente às câmeras. Sim, tinha que parecer que eras lindo, como qualquer herói que se preze, como mandam teus superiores. Foste instruído para isso, tenho absoluta certeza.
Soldado, quem te orientou para enveredar esse caminho se não eras obrigado a tal? O que fez a tua cabeça? Percebi que não foi uma ideologia assim que abriste a boca para afirmar que foste mandado para uma guerra diferente. Acaso não pensaste que o que se traça em uma sala com ar refrigerado não é a mesma coisa que em um campo de batalha? Então pensavas que uma guerra em tempo real é a mesma coisa que um videogame, onde se aperta pequenos botões e, se tudo der errado, basta apagar o jogo e recomeça-se tudo de novo? Não, soldado. Não acredito que tenhas uma cabecinha tão ôca. Uma guerra é uma guerra e não um simples, ou complicado, jogo. Uma guerra envolve vidas, dores, perdas, destruições, cinismos, mentiras, interesses, mortes, sofrimentos e mais uma infinidade de coisas. É uma mudança total dos dois lados — dos vencidos e dos vencedores.
Por que tu te meteste numa empreitada dessa sem pensar nas mínimas conseqüências? Teu país não foi atacado pelo inimigo imposto. O rotulado inimigo não te ameaçou em nenhum dos afirmados interesses. E tu embarcaste nessa viagem voluntariamente, repito. Sei que tudo que esperavas era ter uma rede de segurança que garantiria bons benefícios, um salário descente, facilidades para concluir teus estudos e o bem estar de toda tua família. Não contavas que algum dia o teu comandante-em-chefe te mandaria para uma guerra sem sentido e injusta a qual a maioria do resto do mundo condenaria e não daria apoio. Agora, soldado, tua viagem não tem retorno, ou o teu retorno, apesar de glorioso pelo colorido das imagens na TV, é inglório.
Alguns afirmam que tu és um herói, mas posso ver pelo brilho dos teus olhos que nada de heroísmo emana de teu semblante. Vejo que carregas uma expressão de medo. Tiveste medo da morte? Tiveste nojo do sangue dos teus irmãos e dos outros seres humanos? O teu estômago ainda se embrulha quando pensas nas partes soltas dos corpos depois que as granadas detonaram destruindo tudo em teu derredor?... Ah soldado, como tenho pena de ti. Gostaria de ter te iluminado quando fazias apostas com teus companheiros antes das missões sem sentidos. O meu estômago é que agora revira quando ouço tuas declarações que vocês apostavam o número de mortes que cada um iria causar numa ou noutra missão com armas de alta precisão. Soldado, não se aposta dinheiro na vida ou na morte alheia. Talvez os bandidos ou marginais isso o façam. Confesso que não esperava ouvir declaração deste calibre de um membro da mais poderosa força armada de todos os tempos.
E agora, soldado? O Natal se aproxima e rolas para lá e para cá em cima de uma cadeira de rodas. Esperas tua vez para começar um tratamento mais condizente com a tua realidade. Sonhas em colocar uma perna mecânica para que possas te movimentar tropegamente pelas estradas deste mundo. Os teus superiores estão muito ocupados em alinhavar contratos de negócios bilionários e eles não demonstram nenhuma pena de ti. Os teus superiores não têm tempo para pensar em casos como o teu.
Fica tranqüilo, soldado. Nem tudo está perdido. Ainda te resta a vida no resto de corpo que te restou. Parece redundância, não é? Mas é proposital: o resto de tudo. O resto da vida. O resto do ano. Ver o Natal passar de longe pelo resto de uma nesga da janela de teu quarto, onde ainda se pode ver os raios de sol ou a neve caindo lá fora. O resto de uma luta sem fim, onde o ódio e o desprezo pela vida são mostrados ao vivo e a cores sob um comando de um controle remoto. O resto de uma esperança, entre canções natalinas, de que os homens ainda possam tentar construir um mundo mais tolerante, com mais entendimento e com um pouco mais de igualdade e paz.
© Fernando Tanajura
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