O jabuti e o colibri
- Não entendo tanta vida em sintonia com tamanha lerdeza. Principalmente quando você me diz que há centenas de anos costuma vir a esta praia. Que inclusive presenciou a chegada dos navegantes colonizadores com suas naus de paus.
- É verdade.
- Não entendo você, tão lerda, viver tanto; enquanto eu, que extravaso energia, sou tão efêmero. Ademais você nunca tem pressa.
- Pressa pra quê?
- Pra quê! Já atentou, por acaso, para o colorido das flores do campo e seus aromas? De como lá, dentro das flores, se dispõe o néctar? São muitas as flores que tenho de catar o mel enquanto é dia.
- Você, colibri, tem por prazer viajar o mundo beijando flores. Profissão deveras salutar. Porém eu, o jabuti, não. Depois não sei voar e, como frisado, em terra caminho penosamente.
- Talvez por isso não conheça a beleza do nosso sistema cá fora. De observar, por exemplo, as árvores de bons frutos. De como brotam suas flores. Primeiramente coloridas, para despertar nossa atenção. Depois exalam um suave perfume para nos atrair e, finalmente, oferecem o néctar para que a contatemos. Sendo este bem no meio da flor para que a polinizemos no ato de nos deliciarmos com seu mel. Assim, da flor vem a semente normalmente envolvida por uma polpa; que também tem cor agradável, cheiro convidativo e sabor apetitoso. Tudo isto para que outro agente primata receba as dádivas de tais plantas pelos seus deliciosos frutos. Pois em usando a polpa do fruto estará também levando a semente da respectiva árvore para ser plantada em outro lugar. Algo que a árvore doadora por si só não poderia concluir se não utilizasse desse artificioso dom.
- Certo! Todavia todos fazem parte do mesmo sistema. Tanto a você no ar, quanto a mim no mar. Desde você, colibri, que precisa dos muitos bater de asas por segundo, a mim que levo um tempão enorme para dar um simples passo. Não obstante ser à base desse maroto andar que presenciei vários estágios da humanidade; dando passos trôpegos na sofreguidão da vida, sem se ater para a sua. Buscando evoluir singrando mares sobre mudanças de cascos mortos em si mesmos. Do casco de madeira ao de ferro. Do uso útil ao bélico. Quando a verdadeira evolução está em se manter a preservação dos que estão navegando sob cascos vivos. Estrategicamente dispostos de modo a protegerem-se das intempéries não do mar, mas do mundo. Na ordem inversa daquilo que sempre esteve patente aos olhos dos primatas. Foi precisamente à base desses meus lerdos passos, sob cascos emborcados, que singrei todos os mares. Dos quentes aos amenos. Dos árticos aos antárticos. E hoje estou vindo aqui, à praia, mais uma vez, para enterrar meus filhos.
- Enterrar filhos?!
- Claro! Talvez seja esta a razão da longevidade dessa minha espécie de ser sob cascos: Morrer primeiro para nascer depois. Para tanto cavamos um buraco nesta areia de clima quente, depositamos confiadamente os gêneses dos nossos filhos; cobrimo-los de terra e volvemos a singrar os mares. Quando chega a época de nascerem, simplesmente brotam da terra e livremente ganham os mares da vida contida no reino de Deus.
Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. (João 3:3).