A Falta que a Falta Faz

De todas as minhas ocupações, a que eu mais aprecio é ser feliz. Não sei se e é que precise mais de plantas ou paredes, mas às vezes sinto-me sufocado quando vejo-me dentro duma cúpula abastada com pessoas. Essa gente que me ladeia, por vezes rouba o lugar das árvores e me leva o bole-bole que já dificilmente é exalado dos poros da natureza.

Tenho querido respirar toda vez ao acordar, mas não consigo, e ainda assim estou vivo. Vejo-me inserido numa cadeia de parasitas que têm os olhos fixos nas críticas, os corações longe de alcançar o reconhecimento e as mentes incapazes de perceber o quão necessário é, pelo menos por um milésimo, nos despirmos de nós mesmos e vestirmos a alma alheia, porque só assim, acredito, poderemos perceber e conhecer melhor os outros.

Colocar-se na posição de outrem é sempre a maneira mais sadia e inteligente de avaliarmos as justificações do próximo, quando este tropeça em algum caso. Ainda que não seja de opinião geral, observo que o afastamento, por mais simples coisa que pareça, é um dos instrumentos para se produzirem assassinos em série. Estas pessoas que sofrem injúrias e maus-tratos de índole psicológico hoje, podem certamente ser o terror de amanhã. Por quê? Em vez de estendermos os braços e aguçarmos as vozes para a exortação, alinhamos um dedo ofensivo e esticamos os beiços para a condenação.

A Joana preferiu remover-se de qualquer que fosse um universo de pessoas. Ela está aí todos os dias, mas é como se apenas a sua ausência fizesse falta. É incompreendida e depara-se dia pós dia com uma dada aura de incompetência ao enfrentar o espelho, em consequência de o lado mais sensível do mundo parecer nada sentir por ela. O peso que transporta na memória diariamente, o agouro e o sentimento de inexistência a invade e deixa-a presa num conformismo que lhe destrói a personalidade, e as mesmas pessoas por detrás disso são ainda as que lhe questionam o porquê da frieza.

As famílias conservam filhos deprimidos, a sociedade cria doentes e a igreja cultiva mais descrentes. Quantos meninos seriam hoje um amor de homens e mulheres se tivessem ingerido mais carinho do que murros na pele, ou quantos cintos atirados ao rabo de uma criança são hoje a grande causa para delinquentes nas vias? Quantas miúdas não conhecem o valor de se darem valor por terem aprendido desde cedo que não valem nada e por isso leiloam o seu templo? É que existem muitos factores-base que apontam para o porquê de cada jovem frustrado, para o isolamento profundo e aterrador de cada ser anti-social. Muitas pessoas hoje detestam pessoas por se terem visto comparadas a um objecto. Uns são amigos, outros são apenas actores desempenhando os seus papéis com o maior perfeccionismo que auferem.

Se houvesse mais perdão, se houvesse mais entendimento e menos interesse em coisas triviais, seria menos preocupante ver suicidas e psicóticos a andar por aí. Os profissionais em psicanálise teriam logo menos trabalho e evitariam ter que perder o próprio juízo tentando trazer de volta os dos pacientes.

Fazer falta é o que falta. É impossível sequer imaginarmos quantas vidas já matámos somente ao mostrarmos que elas não nos fazem falta. Se tu amas sem dizer, fazes alguém achar que não faz falta. Se precisas dar mas só demonstras precisar receber e mais receber, emites um mau cheiro de ti mesmo e abafas a boa relação existente entre ti e outrem, logo fazes parecer que sem nada esta pessoa não faz falta. Se podes e deves mas não perdoas, se podes fazer um esforço mas preferes ainda não esquecer, denuncias que falta é o que alguém não faz.

Todos precisamos fazer falta, sim, porque senão, claramente não temos importância nenhuma, e não tendo, o que fazemos aqui então? Por esta razão, muitos fecham-se para o mundo exterior, abraçam o escuro e vivem no desaparecimento. Outros, incapazes de medir a raiva e a decepção que os consome, consomem ideias violentas e espalham terror à sua volta.

Há quem ainda não tenha grandes razões para sentir-se em baixo. Tem pessoas ao seu lado, não tem em falta alimentação nem vestuário, é acarinhado e diga-se uma pessoa abençoada, mas por causa d´algo que a mesma pessoa desconhece, é triste.

São essas, para mim, as pessoas que mais precisam de ajuda, porque sentem falta delas mesmas.

Widralino
Enviado por Widralino em 24/02/2018
Código do texto: T6262637
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