O Coração está molhado. Mas a boca está seca!
"Muitos de nós vivem com o peito mais encharcado que roupa esquecida na máquina de lavar, com a torneira aberta. Mais inflado que chester do almoço de domigo.Tem afeto chorando lá dentro, declaração de amor enxovalhada. Raiva presa com rolha na garganta. Desejos desnutridos. Saudade e lembranças mergulhadas em um balde de água sanitária.
Tudo para esquecer, eliminar manchas de experiências marcantes e sensações da história pessoal. A ordem é deixar bem longe o que nos sufoca. Escondido das nossas desconfianças. Inalcançável por nossas percepções. Ou então, outra possiblidade é colocar na “nuvem”, — como se diz hoje no mundo digital — para desocuparmos a memória super abarrotada de arquivos nos computadores e laptops.
Aliás, este é um movimento interessante, semelhante a se deixar algo na reserva. Como um cara ou uma gata afamados pela sensualidade. A pegada é gostosa, mas só se encontram eventualmente com um único objetivo, atender à sanha dos sentidos. Aplacar a fome de sexo que acende as gulas do instinto. Depois é muito prático. Levamos a criatura de volta para a “nuvem”. O negócio mesmo é não se envolver com nada nem com ninguém.
Definitivamente o coração precisa ser esvaziado. Como apartamento sem móveis e tristonho. Sem cara de aconchego, nem mínima chance de acolhimento. Siga a lógica: não se pode ocupar espaço de vida com trastes sentimentais atulhados, sequer sem pagar aluguel, no ventrículo deste órgão tão eloquente. Coração adora samba. Remelexo. Um eufórico-bum-pra-ti-cum-dum-entre artérias e veias que o bombeiam direto, feito escravas.
A gente sente mas não fala. Põe cadeado em pensamento. Vai empurrando as semanas no calendário com a barriga estufada de mutismo doentio. O corpo começa a inchar, vem a falta de ar e ninguém entende o porquê de tanta agonia.
Há poucas décadas o coração morava na boca. Mexia qualquer coisa dentro doida, sem pecado e nem juízo. Madrugadas esticadas no dengo, com preguiça de acordar. Romantismo escancarado. Paixões abusadas. Pouco se lixando de serem taxadas de bregas ou inconvenientes, por palavras feias, verdes de inveja, sempre à espreita. Riso despudorado. Surround. Explodiam poesias nas ruas, nos becos e ouvidos.
O coração hoje ainda anda molhado. Sabemos disso, felizmente. Apesar de tanta violência em cada esquina do cotidiano. A boca, porém, teima em se manter seca. Rapadura com farinha e sem caldo de cana. Paçoca de amendoim sem refresco. Sonhos desidratados sem socorro.
Será que ainda não caiu a ficha de que o amor é a grande saída — ou entrada para se ingressar em uma loja de flores e escolher logo uma braçada de girassóis.
O coração anda molhado, sabemos. Mas tem silêncio que já empedrou nas bocas murchas de afeto. Ele espera ser arrancado a fórceps, que seja, do mundo das delicadezas esquecidas. Ele espera nascer bonito em nossos gestos, vontades e discursos.
Desfilar as estrelas incrustadas nos olhos. Seda pura na ponta dos dedos. Toques. Mágicos amassos. Carícias cruas expostas nas ruas da cidade. Gemidos da cor do cobre. O fel transformado em mel. Vinagre ácido das veias que, docemente, vira leite.
É a alquimia das vontades. A coragem em sangue abençoado. Afagos do vento, lambendo por inteiro nossos rostos e os cabelos. Línguas trocando em miúdos conversas úmidas. Ruídos inesquecíveis. Dialetos cúmplices do entendimento entre volúpias e demandas.
Há pessoas que morrem com a boca cheia de formiga. Outras sufocam com multidões de palavras mesquinhas ou egoístas, presas na garganta. Há os que se asfixiam de amores mal ditos. Ou malditos, como queiram.
Ainda os que desconhecem as delícias, tão íntimas por exemplo, da sensibilidade de alguém, como o poeta Mario Quintana. De vez em quando, entre sorrisos, ele deixava escapar: “A melhor coisa é morrer de amor e continuar vivendo”.