HISTORINHAS MEIO DIPLOMÁTICAS parte 7

DA PRIMEIRA OU DO PRIMEIRO NUNCA SE ESQUECE

Essa conhecida afirmação da sabedoria popular aplica-se bastante bem aos primeiros chefes com quem trabalhei na carreira diplomática. Trata-se de colegas com os quais muito aprendi e de quem sempre guardarei grata recordação.

Permito-me, nesta historinha, relembrar o primeiro chefe no exterior, o embaixador Rodolpho Godoy de Souza Dantas, com quem servi em Luanda de meados de 1976 ao final de 1977. Mais do que um chefe, revelou-se grande amigo, dotado de paciência paternal para orientar o jovem terceiro-secretário, saído do Instituto Rio-Branco havia menos de dois anos. Tanto ele quanto a esposa Monique trataram-me com grande cordialidade, deixando-me à vontade para exercer minhas atribuições, em especial as ligadas à administração da Chancelaria e da Residência da Embaixada. Como se tratava de imóveis geminados, era-me permitido algumas vezes despachar expedientes tardios com o embaixador no terraço da residência, ao som de Vinicius de Moraes ou outra pérola musical, além de eventual uisquinho.

Rodolpho desempenhou papel dos mais valiosos nesses primeiros tempos das relações entre o Brasil e Angola, sem haver merecido, no entanto, ao que eu saiba, o devido crédito por isso. Dentro do governo angolano, de linha marxista, havia quem desconfiasse das intenções brasileiras, apesar de o Brasil haver sido o primeiro país a reconhecer a independência de Angola. Os expoentes mais radicais encaravam, negativamente, o fato de sermos governados por um regime militar de direita, por eles considerado como demasiado próximo dos EUA.

Com sua franqueza e atitude sempre ponderada, nosso embaixador desenvolveu paciente e comedido trabalho de formiguinha junto às autoridades locais, atendendo às suas questões e desanuviando espíritos quanto ao que caberia esperar da cooperação brasileira. Rodolpho mostrou-se o agente certo no momento certo. Sua atuação foi tão bem-sucedida que um dos chanceleres angolanos nesse período passou a chamá-lo ao Ministério para ouvir sua opinião sobre os mais diversos assuntos da agenda internacional. Resultado significativo e inesquecível!

O filho do embaixador, Pedro, atualmente na carreira, pode sentir-se orgulhoso do pai, que, ademais dos seus muitos méritos profissionais, sempre se mostrou uma figura humana digna de elogios e admiração.

TRÊS XARÁS COMPLICAM O PROTOCOLO

Em atenção a convite do Suriname, foi organizada missão diplomática brasileira para participar de cerimônia oficial em Paramaribo nos anos 80.

A citada missão compôs-se de três profissionais de diferente nível hierárquico, mas curiosamente iguais em seu nome próprio: Fernando. Não chega a constituir nome de batismo raro no Brasil, mas seria certamente menos comum que os casos de José, João ou Carlos, entre outros possíveis.

Além da coincidência nominal, o chefe da missão, um embaixador, tinha em comum com o terceiro integrante do grupo (seu assessor em Brasília e contador desta história) o sobrenome Magalhães.

Era muito Fernando para um só Protocolo e não podia deixar de ocasionar alguma confusão. No dia do almoço dos chefes de delegação, dei uma olhadela na mesa respectiva e surpreendi-me em ver meu nome ali, ao lado de alta autoridade de outro país. Evidente que se equivocaram de Fernando e de Magalhães! Avisei meu chefe de imediato e ele postou-se no lugar que lhe deveria estar reservado, tomando o cuidado de retirar a identificação incorreta para evitar possíveis erros de seus interlocutores.

Por essas e outras que as tarefas de Cerimonial são muito exigentes e requerem elevada dose de atenção por parte de seus responsáveis. Como se comenta no meio diplomático, quando tudo sai perfeito, mal se percebe, mas qualquer falha vira notícia.

EM DIPLOMACIA, TODO CUIDADO É POUCO

A carreira diplomática cunha vários ditos, à guisa de mandamentos para o bom exercício da profissão. Um dos mais conhecidos é: “confira sempre!” Traduz a estrita necessidade de verificar-se, cuidadosamente, todo projeto de resolução ou minuta de acordo, qualquer texto a ser assinado e emitido. Convém ler e reler até o último instante. Basta um descuido para o erro capital.

Outro mandamento consiste em evitar brincadeiras e piadas. Em função das diferentes etnias e culturas com que um diplomata tende a lidar, um gracejo que faz todo sentido entre brasileiros pode repercutir mal junto a outra nacionalidade.

Não obstante, minha queda para cartunista e humorista costumava fazer com que eu não observasse o segundo mandamento em mais de uma ocasião. Por sorte, minha última inobservância gerou situação parcialmente hilária, sem maiores consequências.

Minha esposa e eu estávamos em Vancouver quando organizamos mais um jantar de confraternização com outros colegas. Havíamos convidado três casais latino-americanos e, para completar nossa lista usual de dez pessoas, acomodadas confortavelmente na mesa, decidimos chamar o embaixador da Malásia, de quem eu gostava e cuja senhora era muito amiga da minha.

Esses jantares eram quase invariavelmente de caráter informal, do jeito que sempre preferi. Claro que alguns colegas, sobretudo europeus, costumavam vir de gravata, mas a maioria vinha em traje esporte, como mandava o meu figurino. Eu em geral os recebia de camisa de mangas compridas, só utilizando paletó ou algum tipo de agasalho em casos de noites mais frias (não raras no Canadá, diga-se de passagem).

Ao passar aos convidados, como de hábito, um e-mail para confirmar endereço, dia e horário, acrescentei um “carioca style” que acentuasse a informalidade no caso desse jantar específico. Naquela noite, ao ouvir a campainha soar, fui atender e estranhei ninguém estar diante da porta. Só então percebi, meio escondido, à esquerda da casa, o casal da Malásia que me fazia gestos para que eu me aproximasse deles. O colega estava sem graça, pensando não estar trajado adequadamente para o jantar, com sua túnica típica e de calças compridas. Disse-me haver consultado na Internet que o traje carioca de praxe seria bermudas e chinelos. Enquanto me divertia interiormente, tranquilizei-o e afirmei que estava perfeito. O jantar transcorreu com o habitual clima de descontração e amizade.

Jamais repeti a infeliz expressão, contudo. Facilmente compreensível para os latino-americanos ou outros nacionais familiarizados com o Brasil, ela gerou constrangimento para meu bom amigo malaio. Passei a respeitar mais o dito diplomático de que se devem evitar gracinhas.

Brasília, julho/setembro 2024.